O Tema e a Musa
Faltavam algumas horas apenas. O cigarro, ele percebeu, queimava solitário no cinzeiro, indicando sua preocupação anormal. Não tinha ideias. A tela se abria, imensa e vazia como um areal, diante de seus olhos lacrimejantes de luz. Tirava os óculos e os limpava quase obsessivamente para notar, com decepção, que de nada adiantava: a tela ainda estava lá, as ideias não vinham e seus dedos se recusavam a escolher as teclas adequadas.
Foi então que o Tema apareceu, timidamente, no canto superior esquerdo.
- Nada ainda? – interrogou, com jeito.
- Nada – ele respondeu. – Nada de nada. Inspiração zero.
Ambos suspiraram.
- Pesquise-me na internet – sugeriu o Tema, cheio de reticências.
- Todo mundo faz isso. Quero sair do lugar comum – exclamou.
Tema respirou fundo, jogou um travessão e disparou, meio magoado:
- Procure outro de mim, se isso ajuda.
- Não posso! Já lhe disse várias vezes que não posso. Tem que ser você. Faz parte da profissão. Eu não o escolhi, percebe? Eu ganho para falar sobre o que eles querem, jamais minha vontade foi feita. Se fosse, você sabe sobre quem eu estaria escrevendo agora, não sabe?
- Claro – disse o Tema, com um deboche fricativo. – Sobre Ela...
- Ela mesma. A Musa. Aquela que é feminina, singular. Aquela que fez do meu passado um pretérito imperfeito e do meu futuro uma hipérbole. A Musa, minha metáfora, por quem meu pensamento é sempre um gerúndio...
Tema segurou o riso.
- Tá bom, senhor escritor. Só que a revista não pode esperar. Daqui a pouco sua editora vai ligar cobrando, “e aí cara, estamos fechando a edição, cadê o texto?”, e então quero ver você falar sobre hipérboles e gerúndios com ela.
De repente o olhar do escritor se perdeu na parede à frente, enquanto o cigarro caía, tornado em cinzas quase sem ter sido tocado.
- Falaria com Ela sobre qualquer coisa... por horas e horas...
O sorriso enigmático do homem fez o Tema gargalhar.
- Ah! - Tema apontou-lhe o dedo, rindo - Então é isso! Agora entendi tudo!
- Sai fora – disse o escritor, rindo também. - Vou continuar pensando em você mas não quero mais ver a sua cara. Capisci?
Minimizou aquela tela e abriu outra. Acendeu mais um cigarro – que, depois de um trago profundo, depositou no cinzeiro lotado - e começou a digitar freneticamente.
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Este texto faz parte do Exercicio Criativo "O tema e a musa".
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