Porcelana Vazia

" Viver é a coisa mais rara do mundo. A maioria das pessoas apenas existem."

Oscar Wilde

Estava sozinha naquela rua iluminada, as luzes natalinas clareavam a noite fria. Havia pouco movimento, apenas alguns carros e algumas pessoas. Mas tudo parecia alegre. Nestas horas, todos devem estar fazendo as preces, ceando e se divertindo, os adultos ouvindo as crianças reclamarem que demorava para chegar a tão esperada meia noite.

Eu acabara de deixar uma loja de presentes, onde uma senhora animada me vendeu uma boneca de porcelana. Embora eu recusasse, a mulher insistiu em fazer o embrulho e disse : " A pessoa que vai receber um presente tão gracioso como esse, sem dúvida deve ser muito especial para você! "

Ela também sugeriu que eu escrevesse um cartão para essa "pessoa especial", para a pessoa que eu amava. Aí é que está o problema, eu não amo ninguém.

Não me entenda mal, não estou sendo ignorante ou algo do tipo. É bem simples na verdade, da mesma maneira que não odeio, não amo.

Eu não sinto nada. Os intelectuais, pessoas que acham que são extremamente cultas, poetas desiludidos e moralistas tendem a achar que fui abençoada por Deus. Afinal, eu não sinto dor, medo, tristeza, não odeio, não sofro, não invejo.

Mas também não sinto prazer, felicidade, não amo, não desejo.

Minha mãe? Apenas a mulher que me pariu e me alimentou com seu leite materno.

Meu pai? Apenas o homem que paga minhas contas e o pão de cada dia.

Parentes? Nunca precisei deles.

Amigos são bons para se jogar conversa fora, e amantes são ótimos para matar o tempo.

Olhei para a sacola de papel que carregava na mão esquerda e depois para o céu, como um velho hábito. Era estranho que no natal nunca chovesse. Não é como se essa festa fosse tão importante. O tempo não pararia e o mundo não deixaria de ser um lugar hostil.

Não entendia porque as pessoas gostavam tanto dessas datas comemorativas. Haviam várias coisas que eu era incapaz de entender. Por que todos acreditavam em sonhos que nunca se realizarão? Para que fazer revoluções? No fim das contas, enquanto um ser humano estivesse no poder, ele não se corromperia e continuaria a mesma desgraça? Ou por que estamos vivos?

A vida não faz o menor sentido. Eu não tenho um único motivo para viver, e se você pensar, verá que não há motivos para viver também.

" Não ter um motivo para viver, é o mesmo que estar morto ", foi o que uma vez ouvi dizer. Então, o que minha mãe pensaria ao descobrir que deu a luz a uma criança morta?

Presa em meus devaneios, não havia percebido o quanto já tinha andado. Eu me encontrava em uma praça escura e deserta, onde havia um pequeno playground. Virei à procura de alguma alma viva, mas estava completamente só. Dirigi-me a um balanço de correntes enferrujadas, cujo o assento de madeira parecia ter mais de dez anos.

Tirei o embrulho de dentro da sacola, tentei me lembrar do porque de ter comprado uma boneca de porcelana, numa loja com uma atendente hiperativa, em plena noite de natal, já passando das 23h. Ah, sim, eu a comprei por simples impulso. Mas talvez o motivo seja porque achei a boneca muito parecida com "alguém" que eu conhecia tão bem, mas ao mesmo tempo me era um total estranho.

Já tendo me livrado do papel colorido e da caixa, segurava a boneca e a analisava. Estudando-a parte por parte com meus dedos, sentindo o tecido de seu vestido clássico, seus cachinhos dourados macios e a porcelana fria de seu rosto. Perdi-me naqueles olhos de vidro, sem vida.

Neles não havia apenas o meu reflexo, mas também tudo o que sou e todas as máscaras que usei.

Para os meus pais, eu era uma boa filha; Para os adultos, era uma boa menina; Para meus tutores, era estudiosa; Para os amigos, eu era leal; Para os inimigos, eu era forte.

Eram tantas máscaras que seria difícil para qualquer um descobrir qual era a verdadeira faceta. Bem, eu não possuía uma verdadeira faceta. Era tudo fachada, uma grande brincadeira na qual eu fingia ser humana.

Aprendi a chorar, para frequentar os enterros e reagir as tragédias; Aprendi a rir para conseguir as coisas que quero e conviver com as outras pessoas.

Mas quando paro para pensar, meu peito dói. Não porque dentro do meu peito bate um coração, mas porque é angustiante ser apenas uma casca vazia.

Em todos os abraços, não havia calor. Em todos os beijos, não havia afeto. Em todas as vezes que dormi com alguém, não havia desejo. Em todos os meus sorrisos, não havia felicidade e em todas as lágrimas, não havia tristeza.

Nenhuma palavra que já disse, tem sentido.

Ah, lembro-me das vezes em que corria para o meu quarto, e no escuro, tentava chorar. Mas nunca consegui, não havia motivos para chorar, não havia sentimentos para chorar.

Ah, como eu gostaria de sentir algo tão doce como a dor ou a tristeza. Qualquer sentimento é melhor do que sentir nada. É melhor do que ser apenas uma porcelana vazia.

- Acho que vamos nos dar bem - eu disse para a boneca - Afinal, somos muito parecidas.

Senti algo quente percorrer minhas bochechas e vi gotas caindo no rosto de porcelana. Eram lágrimas. Eu estava... chorando?

" Eu sonhei que estava viva. E quando acordei, lembrei-me que eu não passava de uma existência."

Amanda Nunhofer
Enviado por Amanda Nunhofer em 17/05/2014
Código do texto: T4809709
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