Do Pássaro - |
Posso te falar por horas sobre o pássaro morto. Morto a pedradas, numa dessas ruas do centro. Dessas tão cinzentas quanto todo o resto. Podia te falar, também, de todo esse cinza que me aturde e aflige. Podia falar até mesmo do vermelho do sangue em meio a imensidão cinzenta que nos envolve. Desse contraste, que ainda não sei definir exatamente as conseqüências em minha visão, e por visão sabes que digo muito além.
Do medo e do frio que me resguarda e me faz mendigo, escravo do teu prazer, em teu dorso moreno onde por noites me afundo no mais doce desespero por calor. Desse medo solene de origem desconhecida que outrora se faz amor, medo-amor à morte que se dissipa e se espalha, faz questão em se afirmar, nas paredes, nos muros. Nos postes, ao fim da tarde. Quando o céu torna-se cor-de-rosa. Róseo é o olhar dessa morte, que todas as madrugadas me vem visitar com sua plumagem colorida. A cauda aberta em leque, um pavão imóvel no canto do quarto.
Do desejo pelo qual tenho adoração, dessa adoração pelo desejo que tenho em adorar-te. A ti, a teus olhos, teus ossos. Tua alma, que vagueia pela epiderme do corpo, circula arisca. Dela não se pode reter muito mais do que o esperado, mas me contento com tua saliva, tua matéria física. Com teu suor e teu perfume. Teu corpo e tudo aquilo pertencente a ti que um dia se fará disforme é meu precipício, minha morte lenta, num eterno espreguiçar concupiscente.
E é por isso, que posso te falar do segredo-horror do pássaro morto a pedradas numa dessas ruas cinzentas, do que me foi revelado e do pavão estático de olhar róseo. Pois você é a minha pedra, e nada irá reter.