212 - MANOBRAS MILITARES

O dia amanheceu abafado e quente. A fumaça das queimadas de pastos e campos descia sobre a cidade, numa névoa avermelhada. O sol, ao amanhecer da quinta-feira, 24 de agosto de 1954, era uma imensa bola cor de laranja.

— Mais um dia de sufoco. — Pensou o jovem Aldo Cortez, enquanto vestia a farda. — Ainda bem que hoje o treinamento será só até as nove horas.

Tomou o café de um gole, saiu mastigando o pão com manteiga e montou a bicicleta. Precisava se apressar. Estava com pouco tempo para chegar ao stand do Tiro de Guerra. Desceu, embalado, a comprida Rua Major Reinoso, passou pela praça de Nossa Senhora da Conceição e freou firme no final da ladeira, chegando pontualmente ao destino de sua desabalada carreira. Eram 6:30 da manhã e o tenente Gomes já estava em seu posto, na plataforma de madeira, de onde visualizava todo o pátio de exercícios.

Os colegas estavam entrando em forma quando Aldo encostou a bicicleta na paineira. Correu para ocupar a posição, o terceiro à esquerda, na segunda fila. Ali na baixada onde se situava o stand não se via o sol, e a névoa era fria, pois subia diretamente do córrego da Ressaca, que cortava ao meio o amplo terreno usado para manobras, marchas e exercícios de tiro.

O tenente parece agitado. Normalmente, aguarda com tranqüilidade que os soldados façam a formação, os braços cruzados sobre o peito, olhando com certo orgulho para a tropa. Naquela manhã, todavia, está nervoso. Olha insistentemente para todos os lados, incomoda-se com os cochichos do pessoal da terceira fila, coloca e retira o apito da boca, ajeita o quepe. Dá um apito estridente e os comandos de praxe:

— Atenção! Sentido!

Ouve-se o bater uníssono dos tacões. Todos se aprumam, com braços estendidos ao longo do corpo. Garbosos. Afinal, já são seis meses de exercícios e treinamentos.

— Atenção! Descansar!

Os soldados obedecem, colocando-se na posição comandada. O tenente não espera mais, começa a falar um tanto emocionado ao transmitir, de chofre, a notícia que recebera por telefone em mensagem codificada e urgente:

— O presidente Getúlio Vargas se matou na madrugada de hoje, com um tiro no peito.

Tempos difíceis estavam se sucedendo. O país mergulhado num “mar de lama” de ladroagem e corrupção, politicagem de agressões verbais e atentados pessoais. Carlos Lacerda, em seu jornal “Tribuna de Imprensa”, ameaçava atear fogo no Congresso e na Presidência. Os partidos principais — UDN, PSD e PTB — travavam uma luta de morte pelo poder. Atentados, ameaças, crimes políticos insolúveis aconteciam constantemente. Ao tentar eliminar o jornalista ultradireitista, o pistoleiro atinge mortalmente um oficial da Aeronáutica que acompanhava Lacerda. Na investigação urgente feita pelo Ministério da Aeronáutica, chega-se a Gregório Fortunato, fiel escudeiro do presidente Vargas, como mandante do crime. Na iminência de ser envolvido diretamente na trama, o presidente não vê outra saída senão o “honroso suicídio”.

Os candidatos a reservistas ouvem sem mostrar muito interesse. São rapazes que vêm das classes menos favorecidas: filhos de operários, trabalhadores rurais, na sua maioria, nada entendem de política. Os rapazes filhos de famílias abonadas, que estudam ou não, conseguem se safar do serviço militar, do “tiro de guerra”. Apenas um ou outro do grupo de mais de quase sessenta moços presta atenção no palavrório, na “ordem do dia” proferida pelo tenente. que o tenente. Os mais simples, trabalhadores rurais, tremeram quando ouviram a notícia.

— Como parte das Forças Armadas, cumpre-nos manter a ordem e a tranqüilidade em nossa cidade. — O tenente chega a se emocionar com as próprias palavras. Passa às determinações para a ação imediata dos homens sob seu comando.

— Vamos patrulhar a cidade e as principais saídas: as estradas de rodagem, a estação da Viação Férrea, durante as próximas doze horas. Os soldados agrupem-se nos respectivos pelotões de treinamento. Aqui no stand do Tiro de Guerra ficará o sexto pelotão. Cada pelotão terá um setor sob sua responsabilidade. Quero relatórios de quatro em quatro horas. A cada pelotão serão entregues dois fuzis com cinco cartuchos. Só devem ser usados em última instância, nada de fazer besteiras. Reúnam-se para receber as armas e munições em seguida. — Elevando a voz, dá os comandos finais: Sentido! Debandar!

Ainda assustados com a notícia e com a perspectiva de andarem armados pelas ruas da cidade, os reservistas saíram silenciosamente de forma e se agruparam, cada qual procurando seus companheiros e o chefe de pelotão.

— Primeiro Pelotão!

— Pronto, Tenente. — Os sete moços fardados perfilaram-se na frente do comandante.

— Vocês ficam encarregados da estrada que sai para Cruzeiro Velho. Ficam postados na saída, atrás do cemitério. — Entregando os fuzis a dois dos soldados, recomenda mais uma vez o cuidado no manuseio das armas e uso da munição.

Assim, um a um, os oito pelotões foram despachados para diferentes locais da cidade e da redondeza. Passava das oito horas quando os soldados deixaram o stand.

Os rapazes eram, de modo geral, disciplinados. Acatavam as ordens, aprendiam as instruções ministradas e sentiam-se responsáveis. Salvo uma meia dúzia de elementos de péssimo comportamento, insubordinados e que viviam fazendo pequenas provocações, coisas sem gravidade, mas que perturbavam. Essa meia dúzia foi reunida e passou a constituir, com mais cinco, o Pelotão do Sete, assim chamado porque o comando do grupo foi dado ao melhor atirador, Armando Cintra, relacionado em sétimo lugar na lista de chamada.

Armandão, um guapo rapaz de um metro e oitenta, era um boa-vida que gostava de farras, caçadas e pescarias. Logo de início revelou a sua familiaridade com o fuzil, e ganhou as graças do tenente, que o encarregou de comandar os piores elementos, com a incumbência de “colocar todo o batalhão na linha”. Encargo que o rapaz assumiu com toda a responsabilidade.

Os pelotões foram assim distribuídos:

O 1o. pelotão foi direto para a estrada que ligava São Roque ao distrito de Parembó. A saída ficava atrás do cemitério, e foi “ocupada” pelo comando sem dificuldade.

O 2o. foi mandado para a estação da estrada de ferro.

O 3o. estacionou defronte a Prefeitura Municipal, cujo edifício abrigava também o fórum e a cadeia pública.

O 4o. ficou encarregado de vigiar a saída para São Tomé, depois da curva do Quebra-pé, na divisa da fazenda do Januário Malaghietta.

O 5o. devia ficar atento ao movimento de ônibus na estação rodoviária, que era, na verdade, um pátio de estacionamento dos ônibus.

0 6o. permaneceu no stand do Tiro de Guerra, com o Tenente Gomes, os soldados espalhados pelos quatro cantos do imóvel, patrimônio do Ministério da Guerra, merecedor de guarda especial. E também para atender a qualquer emergência.

O 7o. dirigiu-se à saída da estrada de rodagem que ia para Jacumirim, na ponte do Rio Santana.

Conforme determinado, os comandos deviam enviar relatórios dos postos a cada quatro horas. Todos os relatórios foram informações de praxe, sem nada de especial a ser reportado. Entretanto, nem tudo aconteceu como foi relatado pelos emissários ao Tenente Gomes.

O 4o. pelotão estacionou na saída para São Tomé, às margens da estrada de terra, poeirenta e cheia de buracos, sob um grupo de árvores que servia bem para disfarçar os vigilantes. Do outro lado da estrada via-se a sede da fazenda de Genaro Malaghieta, cujo filho estava no pelotão. Tão logo estabelecida a base, o reservista Domingos Malaghieta solicitou autorização ao chefe para ir até à fazenda do pai.

— Pode ir, mas nada de revelar o motivo da nossa presença aqui. É segredo de Estado.

Quando voltou, Domingos veio acompanhado de um casal de empregados, que carregava cestas cheias de quitandas, bules de café e leite.

— Mamãe mandou para a gente. E disse que vai fazer almoço pra todos.

Nem foi preciso dar ordens: os recrutas, que estavam realmente famintos, avançaram nas cestas e, em dois tempos, deixaram-nas limpas. E mais tarde, pelo meio-dia, tendo despachado um soldado para a cidade, a relatar a falta de ocorrências no setor, todos os comandados do 4o. pelotão foram almoçar na fazenda do seu Genaro. Sequer deixaram um vigia no posto de observação. E só voltaram ao posto muitas horas depois, alertados pela chegada do companheiro vindo da cidade com ordem de retornarem ao Tiro de Guerra às 18 horas.

O segundo pelotão assumiu a vigilância da estação da estrada de ferro. O dia transcorreu na maior tranqüilidade. Quando chegaram, por volta das oito e meia, o trem expresso, de passageiros, já havia passado. Às 13 horas, passou o misto, composição que englobava vagões de carga e de passageiros. E somente à noite, às vinte horas, é que passaria o expresso noturno, exclusivo para passageiros, com vagão-leito.

Foram bem recebidos pelo Chefe da Estação, que lhes bateu continência e tirou o boné, numa atitude de servilismo.

— Podem ocupar a sala de espera. — O chefe já havia enfrentado situações idênticas, por ocasião da revolução de 30, quando a estação — e bom trecho da ferrovia haviam sido ocupados por soldados legalistas e, depois, pelos governistas. Portanto, não era para se brincar com a situação, não senhor!

A monotonia foi quebrada no final da tarde, quando passou Maneco Trinta, famoso por ter tomado, certa vez, numa seqüência rápida, trinta martelinhos de cachaça, o que significou litro e meio da branquinha. Maneco Trinta vinha do centro, chapado como acontecia todo final de tarde, cantando, resmungando, ou dizendo palavrões. Melquíades, no comando 2o. pelotão, ouviu o bêbado gritar qualquer coisa parecida com “forças armadas” e não teve dúvidas:

— Carlos e Dito, prendam esse cidadão que tá falando coisas das forças armadas.

Feita a prisão do bêbado, que não apresentou resistência nem explicações, foi o preso encaminhado ao stand. Em lá chegando, a carraspana tendo diminuído, Maneco Trinta sai-se com esta:

— Ara, dotô tenente, eu tava cantando as moça amada da rua do frege. Quer ver cumo é? — Iniciou uma algaravia cantante, interrompida, de pronto, pelo tenente:

— Pára, pára! Chega de besteiras! Carlos, Benedito! Ponham esse cachaceiro pra fora do Tiro.

O sétimo pelotão, sob o comando do Armandão, tomou conta da ponte sobre o Rio Santana, local de passagem obrigatória de diversos ônibus e caminhões leiteiros. Esses veículos transitavam bem de manhã, trazendo leite das fazendas, em latões que se chocavam com estrépito nas carrocerias. Os ônibus passavam em diversos horários e não eram pontuais, tantos eram os percalços de viagem, e o constante embarcar e desembarcar de passageiros ao longo do trajeto.

O Rio Santana corre sereno sob a ponte, formando uma pequena praia pela margem direita. Na margem esquerda, num meandro, forma-se um enorme poço de água claríssima. Muitas árvores de ambos os lados do rio, mas ali sobre a ponte o sol era inclemente. Depois de despachar o emissário das doze horas, com notícia da calmaria do local, descansavam recostados nos parapeito da ponte, num relaxamento total. Rafael sugeriu ao chefe e aos companheiros:

— Vamos dar um mergulho ali no poço. A gente precisa se refrescar. Aqui tá quente que nem o inferno.

A idéia foi aceita por unanimidade. Armandão, sem se dar conta, entregava-se e se integrava no espírito de indisciplina, característica do seu pelotão. Não só concordou como desceu com os companheiros para a beira do rio.

Desceram pela ribanceira e despiram-se sob a ponte. Lá em cima não ficou sequer uma sentinela. Fuzis e mochilas amontoaram-se junto às roupas. Entraram pelo rio e mergulharam no poço. Folgados e tranqüilos, como se estivessem num piquenique.

O ônibus das duas da tarde veio descendo pela estrada. Juca Chofer, o motorista, já sabia que um posto de vigia fora instalado na ponte. De longe, fez roncar a buzina fanhosa do veículo, carregado de passageiros, homens e mulheres que iam para o balneário, cerca de vinte quilômetros à frente.

Ao ouvir a buzina, os recrutas se deram conta do dever a cumprir. Mas já era tarde demais. Juca estacionou o ônibus bem no meio da ponte. Abriu a porta do veículo e desceu, no que foi seguido pelos passageiros. Lá embaixo, os moços, completamente nus, ficaram sem ação.

— Como é, moçada, vamos esperar muito pela inspeção? — Juca gozava a situação, pois pegara os moços de surpresa. Passageiros e passageiras debruçavam-se sobre a proteção da ponte e davam gargalhadas.

— Quem é o chefe? Queremos passar. — O deboche agora era total. As risadas chegavam nítidas até os rapazes, imobilizados pela surpresa. Estavam todos no poço, e lá permaneceram.

Armandão, porém, enfrentou a situação com galhardia. Saiu do poço, exibindo-se de propósito à turba de passageiros, fez continência e gritou:

— Podem passar! Têm passe livre! Não precisa de inspeção.

Quando Armandão saiu do poço, exibindo-se propositadamente, as mulheres do grupo soltaram gritinhos histéricos e correram para o ônibus. Juca, arrebanhando os homens para o interior do veículo, virou-se e gritou a plenos pulmões:

— Ô pelotão de sabão !

Às cinco da tarde o pelotão iniciou a volta à cidade.

— Atenção, turma! Vou fazer o relatório pro Tenente. Ninguém fala nada do ônibus das duas horas. É segredo militar.

Na sede do Tiro de Guerra os outros pelotões já estavam reunidos. Devolvidos os fuzis e as munições, entram em formação. O tenente coloca-se no tablado, de onde comanda:

— Atenção! Sentido! — Todos se perfilam. Após alguns momentos: — Descansar!

Em seguida, faz uma peroração aos comandados, na qual resumiu a situação: tudo estava calmo no país. Recebera ordens da Região Militar no sentido de dispensar a vigilância. Falou da sensação do dever cumprido, da honra militar e coisas que tais. Ao grito de “debandar!” os recrutas responderam com a ovação usual:

— OBAAAAaaa...!!!

ANTONIO ROQUE GOBBO-

SSPARAISO. — 20 DE MARÇO DE 2003 –

CONTO # 212 AS SÉRIE MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 10/05/2014
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