Gregônomo
Nasci feito uma rara lenda antiga, cheia de mistérios, incógnitas e suspense, buscando a sobrevivência a qualquer preço. A vida começou-me a ensinar suas durezas com o rompimento do véu entre os dois mundos: de onde vim e este visitado entre muros e escudos. Contarei com o mimo indisposto da realidade, aos queridos leitores, o que a memória deixar-me lembrar... e escrever também.
Permito-me agora construir miolo e casca deste conto. Embrião de apenas um começo resumido de tudo que, por desfavor ou coisa parecida à vida, certo dia me entregou, por mérito ou por desvalor, mas que foi vivido, sim!
Como as fábulas, quero dizer: “era uma vez” e tremeluzir uma vaga luz de vontade para continuar. Apagagar-se-ão os impedimentos. Eis a minha historia...
Era uma quinta-feira santa de um ano qualquer que não descobrirei. Em casa, apenas uns pedaços secos de pão e a cruz da vida de um pai desempregado, pobre e doente. Anunciou-se o meu nascimento. Minha mãe só pariu no domingo da ressurreição. Ainda bem que nasci em um lindo dia de esperança.
Mamãe perdera tanto sangue com o parto, que entrou em coma hipovolêmico. Talvez tenha contribuído para isso o atropelamento de que fora vítima aos cinco meses de gestação. Mamãe me contou que a sua gravidez foi repleta de dores, náuseas e vômitos.
Papai e ela, por força da precaríssima situação financeira, haviam saído da casa grande onde moravam e alugado um pequenino apartamento, tipo caixão. No apartamento ao lado morava uma macumbeira barulhenta e desrespeitosa. No andar de cima, uma família pertencente a uma seita religiosa que urrava dia e noite. Sem parar.
Mamãe, em coma, tornei-me um beija-flor de ama de leite. Tinha que sobreviver. Mamãe morta-viva não fabricava o leite de minha sobrevivência. E então? Tive que ir faminto às tetas alheias.
Caí nos braços indigestos de duas tias neuróticas que me toleravam. E o menino avançava os dias e não tinha nome. Lembraram-se de pô-lo aos oito dias de nascido. Meu pai achou de escolher “Pascoal” – afinal eu havia nascido na Páscoa! Não acertaram. Meu velho foi voto vencido!Tive que ser batizado com o nome de Francisco. Nesse mesmo dia mamãe deu sinal de melhora: abriu os olhos e voltou a dormir profundamente. Que pena!
Era costume na época afirmar, pela apresentação do edema nos pés da gestante, se a cria seria do sexo masculino ou do feminino. Erraram na minha previsão. Queriam a todo custo que eu nascesse diferente, o que terminei sendo: não possuo sexo! O meu sexo é a vida e a vontade de amar. Aprendi a subir e a descer, a correr e a parar, quanto mais a exibir-me entre outros corpos – tantos deles cruzei feito um último soldado de um exército em agonia, mas outros existiram que mais me pareceram jardins babilônicos. Convivi em todos os mundos que inquilinei e nos raros em que habitei.
Pascoal e Francisco nunca deixaram de ser os mesmos em apenas um: buscador, indeciso, trapalhão, ordeiro, são e insano. Cada dia que vivi foi-me diferente. Fui bicho, fui gente, desbocarando palavras e frases que me quiseram sair.
Aprendi com a vida para dela tirar o meu sustento. Ainda hoje leciono das 8 às 22 horas de quase todos os dias. Estou sempre com um pé em casa,cuidando de minha velha mãezinha e o outro na rua, buscando a sobrevivência. Vida dura e seca. Filho único, solteiro, alma barulhando para se identificar com o mundo, ainda...! menino treloso...
Minha fuga é a minha Grécia, de onde as raízes me chegaram com papai, português de nascença, via filho de gregos. Mãezinha brasileiríssima do sofrimento da silva! Pronto! Vocês, caros leitores, já sabem muito de mim.
Há olhos que enxergam apenas a sombra do que realizamos. Um ato ríspido pode nos condenar a uma vida inteira sob olhares estranhos e desconexos. Meu grito é a voz das ausência que carrego na alma. A estupidez que, às vezes, me sombreei, é a falta de amor e a dor de uma ilusão que insiste em encher-me o coração.
Quando me lembro do que já vivi, eu canto alto. Minha canção pode vir sob a forma de um protesto violento ou de um silêncio apodrecido. Viajo para me encontrar de novo e retolerar os desengamos e a má sorte.
Há em mim jardins de terras secas, apenas olhando e admirando as flores dos jardins alheios. Finco os pés nesses olhares estranhos e tristes que me chegam para me tornar zelador do meu. Cadê achar a água? Sigo assim mesmo, arrimo de mim mesmo, protetor de minha santa mãe pobre e enferma. Alguém poderia dizer-me como se pode ser feliz tendo um espólio desses? É nessa resposta onde estão a água e o aguador. Achando-os, meu jardim produzirá begônias, rosas e antúrios e o susto da sobrevivência cederá!
Sou Gregônono, esse grego português que sofre abrasilianado, querendo ser gente feliz, amado, usando a sombra da vida para não morrer queimado feito a terra do jardim de minha alma.
- Não vais dormir, meu filho?
- Acabei de escrever o conto agora, mamãe.
- Que conto?
- Depois lhe conto. Ele é longo e triste...
- Por quê, filho?
- Porque você existe, minha linda mãezinha..., apenas por isso.
-Vá dormir..., descansar...
Quem me dera eu pudesse fazê-lo agora...