Catrina

Da janela do quinto andar, olhando para baixo, é possível notar a quanto anda o trânsito. Ou a quanto andam as pessoas. Mas Catrina prefere olhar às árvores com seus olhos azuis penetrantes que dilatam a cada movimento leve e vagaroso, em que as folhas se arrastam no meio do clarão cinza da poluição. Às vezes, ela olha com preguiça às pessoas, franzindo o rosto e cabeceando o sono que deixa seus reflexos lentos. Boceja da janela. Espreguiça o corpo acuado. Encurvando-se, parecendo um arco. Se arrepia, não pelo frio, mas pela preguiça.

Lá embaixo vê o trânsito caótico. Ela nem se quer sabe o que é trânsito. As pessoas não a importam. São odores que correm. Os cães sim, estes Catrina nota com uma exatidão instinta. Observa incomodada ãqueles que passam por debaixo de sua janela fuçando os lixos e bramindo às ruas que buzinam ou, às vezes, aos bêbados alegres que dançam uma melodia sem som e reclamam à vida que mentem nas estórias de suas idéias amortecidas pelo álcool.

Catrina odeia cães. Odeia o fato de eles incomodarem seu sono e a todos os seus familiares da redondeza com aqueles uivos e latidos afoitos e diáfanos. Mas hoje ela não se importa. Sente-se a indiferente e ociosa. Ela mira as cortinas. As cortinas dançam na sintonia do vento que passa. Catrina adora isso. Ela fica estática algum tempo e contempla a direção tomada pela cortina quando o vento a domina. E, quando golpeia a cortina numa direção, suas unhas prendem-se na costura por serem muito longas. Ociosamente fecha os olhos. Parece dormir pousada na janela. Mas suas orelhas estão atentas a tudo. E ela percebe a voz de Àlvaro que, lá embaixo, diz um bom dia ao porteiro. Catrina anseia, sabe que logo mais escutará seus passos através da porta e ficará em frente a ela para que Álvaro a veja rapidamente. Seus quatro anos de experiência sabem que é preciso estar ali para que seja notada. Abandona a janela com rapidez e corre para a porta com seus passos silenciosos. Senta-se em cima da cadeira, em frente a porta, e lá espera.

Escuta Àlvaro na curva do corredor, passos rápidos e um assobio alegre. Ela arreganha os olhos.

Espera. Sua cabeça apenas olha naquela direção e seus olhos nem se quer tilintam mais com a preguiça que antes a dominava. Enfim, ela escuta o estalo da fechadura aberta e vê Àlvaro.

- Boa tarde, minha querida, veja o que eu trouxe!

Àlvaro sempre traz um presente a Catrina.

A pegou no colo e completou, já que sua pequena não sabia ler.

- É uma ração nova... Carne e frango. Vou colocar na sua vasilha.

Catrina mais que rapidamente pula de seus braços e corre até sua pequena vasilha.

Esquece-se das árvores, odores das ruas, cães, cortina e apenas contempla seu presente, trazido pelo seu dono, o único odor que preza.

Catrina ronrona alegre e seu dono vai até a janela, observa por alguns instantes aquele dia cinza.

- Vai chover!

Fecha-a e liga a televisão. Catrina não entende nada.

Mas ela sabe que seu dono esbanja o ócio no sofá, olhando à caixa preta com um bando de pessoas sem odores que ela não se dá o luxo de notar.