O Filho de Eva Braun
Através daqueles olhos inocentes, a noite era uma novidade. Pela primeira vez, ao escurecer do céu, não estava em sua cama, olhando as estrelas apenas de trás dos vidros da janela de seu quarto. Não… Hoje o céu estava bem em cima, como um cobertor escuro coberto de pó mágico e brilhante – ou vagalumes que ficaram presos no tecido e acabaram por gostar de lá por achar macio e quente, e por isso nunca mais tentaram sair.
E a estrada? Essa parte era assustador. Assim como os segundos que despedaçavam em sua mão e ele nem sabia, como um castelinho de areia que se tenta abraçar, a estrada também corria frenética e intensa embaixo deles. Ela era longa e aparentemente sem fim, pois acabava se confundindo com o escuro que tinha lá na frente. Era um escuro feio, não era bonito como o céu, mas por sorte, ele também não parecia chegar, por mais que avançassem em sua direção.
Em contrapartida com seus olhos tranquilos e carregador de entusiasmo, os olhos dela não pareciam nada felizes. O céu escuro parecia que havia perdido seu infinito – virava teto pra sua alma e limite para o seu grito. E o mundo não era grande o bastante pra caber toda a preocupação que carregava nas lágrimas que derramava escondida da criança. Por isso, disfarçava. Mantinha seus olhos fixos na estrada e fingia estar com eles irritados pelo sono e cansaço, quando na verdade, era triste exacerbada que tentava escapar pelos glóbulos oculares.
Em oposição aos dois pares de olhos, os olhos dele estavam acesos e incandescentes, com o único objetivo de iluminar a estrada a noite toda, se preciso fosse. Mas lá no fundo, também carregava sua leve preocupação… Estava há quase uma hora correndo sem dar nenhuma parada, e pelo que conhecia da estrada que seguiam, ainda havia uma distância muito grande a ser percorria. E se sua gasolina não fosse o bastante? E se desmaiasse no caminho, atirando-se à completa inutilidade do imóvel e do inanimado e deixasse seus donos, vítimas, tornarem-se presas… E se fossem mãe e filho castigados por causa dele?
- Falta muito, mãe? – perguntou a criança, que mesmo encantada, começava a sentir suas piscadas ficando cada vez mais fortes.
- Um pouco. – A voz estava trêmula e carregava de pesar. Tentou disfarçar com um pigarreio, mas acabaria descobrindo que nada adiantaria - Está com sono? – E percebeu realmente que o pigarreio de nada adiantou.
- Um pouco.
Ela ligou o rádio. Música sempre influencia na atmosfera de algum ambiente, e a falta dela também. O silêncio é calmo, é sereno, mas também pode ser sufocante e dotado de agonia. Por isso, ligou o rádio na esperança que notas musicais quebrassem essas paredes cada vez menores entre as quais se encontravam, que prendiam seus músculos e inutilizavam sua voz. E mais do que isso… desprezavam seus sentimentos. Inutilizavam seu amor.
A música começou a tocar. A criança tentou prestar atenção na letra, mas ela era tão lenta, que acabou acentuando seu sono. E em breve, não sabia mais o que era sonho e o que era realidade, se estrada era música e vagalume escuro ou mãe se carro mother should I run for president e pó mágico cobertor lágrimas rádio e noite sono era. O que importa foi que dormiu e o último verso da música que tocou enquanto transitava entre a alucinação do sono e o ato de dormir propriamente dito, ficou ecoando na sua mente durante todo o tempo em que dormiu… Of course momma’s gonna help build the wall.
Já ela, em seu transe absoluto, mãos coladas no volante e ouvidos colados nos versos da música, sabia que estava em uma situação completamente contraditória à canção que ouvia. Nunca que ela ajudaria seu filho a isolar-se atrás de um muro psicológico e emocional se ela própria estava sufocada tentando derrubá-lo. E o nome desse muro, qual seria? Amor? Provavelmente. Porque não se escolhe quem vai amar, e às vezes o coração se engana e acaba se apaixonando por quem não devia. Mas se ele escolhe justamente aquela pessoa para amar, seria mesmo engano? Seria possível uma verdade ser enganosa ser deixar de ser verdade?
Rapidamente, olhou para seu lado. Olhos fechados, sonhos infantes. O filho dormira. Sentiu-se mais aliviada. Agora podia chorar sem ser incomodada. Uma chuva leve começou. Agora eram dois pares de olhos chorando: os seus, banhados pelas próprias lágrimas, e os faróis do carro banhados pela chuva. E ela só queria que toda essa água acabasse. Pra sempre.
O que diria quando retornasse à sua casa, à sua realidade? Qual explicação daria? Inventaria uma mentira, contaria a verdade? Assumiria a culpa por ato tão monstruoso, mas que na verdade, possuía apenas o objetivo de cuidar e enrolar no afeto? Sabia que se sentiria culpada por anos e anos, talvez até aquele ano que inaugurasse sua eternidade, mas se não o estivesse fazendo, talvez se sentisse mais culpada ainda. Nunca poderia saber. Era impossível. E no mais, sentia-se culpada por não poder saber.
Já estava imaginando aquela cena triste. Ele chegaria em casa e perguntaria “onde está?”, e ela apenas olharia para o chão e sentiria as lágrimas nascerem naturais como orvalho matutino. Ele perguntaria novamente, em tom um pouco mais firme, “onde está?”, e ela não responderia. Talvez olhasse para cima tentando mandar suas lágrimas de volta para o fundo dos seus olhos, mas o espaço se tornaria pequeno demais para tanto líquido. Haja o que houvesse, ela só não poderia olhar para ele… o que seria inevitável, pois na terceira vez em que repetisse a pergunta fatídica, “onde está?”, ele a pegaria pelos dois braços e a forçaria a olhar seus olhos cruéis, em seus olhos sanguinários, em seus olhos cheios de ódio de sangue de morte de chacina de holocaustos pessoais e de orgulho próprio de amor a si mesmo de superioridade de supremacia. E apesar de tudo isso, como poderia negar a um olhar daqueles, que a conquistou desde o primeiro momento?
Como explicar que tudo foi feito por amor… de ambos os lados? Que seria melhor para os três? Responderia com seu silêncio, e ele perguntaria em resposta, de modo fático: “Eva…?”, e ela nem ao menos poderia em resposta suspirar: “Adolf”, porque ele não o era, embora tanto se forçasse pra ser. Ao contrário dela, que tanto se esforçava para não ser Eva. Nem Eva Braun que se apaixonara por quem, nem Eva do Éden que incoerentemente culpada era por tantos séculos. Por que não Eva Perón, poderosa, determinada, caridosa, amada…? Por que não poderia escolher a Eva que quisesse ser, afinal? As lágrimas dela se misturariam com o beijo que tentaria dar nele e ele, por sua vez, negaria. Sabia que negaria no começo, mas depois se entregaria novamente à sua vida a dois e seu nefasto casamento.
Eva continuava dirigindo. Mãos coladas ao volante, ouvidos colados na música, mother, you had me, but I never had you. Talvez essa música tivesse verdade. Talvez fosse a música-tema da vida de seu filho no futuro, sempre que analisasse a presença vaga e isenta de sua mãe em sua realidade futura, uma realidade órfã e bastarda, que começaria naquele exato momento, quando o carro parasse e a porta se abrisse e ele fosse carregado em seus braços.
Isso acontecia quando ele dormia no sofá. Sempre sentia sua mãe envolvendo-o nos braços e colocando-o na cama. Mas dessa vez, a cama não era a sua. E nunca mais seria. Era uma cama um pouco mais dura, e o quarto tinha cheiro de mofo, mas ele não ligava. Só queria dormir. Sentiu um beijo molhado na testa, molhado de chuva, molhado de lágrima e ele levaria esse molhado por toda sua vida como o último de sua mãe.
Agora, o filho protegido, ela fechava a porta e esperava voltar à sua realidade que terminaria no dia seguinte. Enquanto dirigia, sentia seu coração mais aliviado… talvez por ter se livrado um pouco do medo e da insegurança, mas também sabia que era porque havia tirado de dentro dele um pouco dele próprio.
Algumas realidades são perigosas demais para se ser inocente. E enquanto dirigia de volta, as lágrimas já secas nas suas bochechas, e o carro aceso e incandescente, ela se perguntava se Eva Braun, em seu lugar, faria o mesmo.
E o medo perguntava de volta… e se ela não o fizesse?