Conte-me uma estória para eu sonhar.
Conte-me uma estória para eu sonhar
Estava deitada na cama daquele hospital, e já não sabia mais por quanto tempo estaria ali: dias, meses, anos? A cabeça doía um pouco, mas era uma dorzinha leve, insistente; porém suportável, bem diferente do inferno que havia vivido nos últimos dias, ou seriam meses? Não, ela não sabia.
No dia em que seu marido foi visitá-la, acompanhado de sua filha Adriana, lembrou-se de o ter ouvido dizer, que estavam vencendo a batalha, e que ela era uma grande guerreira. Depois lembrou-se de quando a menina aproximou-se dela, sorriu aquele sorriso iluminado, e disse:
_ Quando irá voltar, mamãe? O papai não sabe cozinhar. Estou cansada daquela gororoba.
Matilde lembrou de ter sorrido e de ter abraçado e apertado à filha contra o peito. Deus! Como era bom ter aquele anjinho nos seus braços falando coisas tão triviais, as quais por um momento tinham o dom de alçá-la para bem longe daquela realidade tão dolorosa!
Ela se encontrava imersa em seus pensamentos, quando a porta se abriu, e ele entrou. Estava diferente, talvez mais forte. Sempre fora tão magro e de aparência raquítica, mas havia se passado tantos... tantos anos. Quantos? Talvez dezoito, vinte anos ou mais?
Ele olhou para ela profundamente, e ela tentou encontrar algo em seu olhar que lhe lembrasse o primo e amigo de outrora. Tinham dividido tantos momentos de alegrias e sonhos, mas depois a vida e o tempo os haviam separado. Por que mesmo eles teriam se afastado por tantos anos? Ela não se lembrava mais, até porque não havia um único motivo, foi uma sucessão de acontecimentos, que fez com que cada um seguisse seu caminho. Mas, olhando para ele agora, era como se o tempo não tivesse passado, lembrou-se de quando era uma garota de dezessete anos. Lembrou-se dos sonhos, das ilusões da juventude, quis abrir a boca para falar, mas subitamente se viu perdida, sem conseguir falar nada, afinal como justificar tantos anos sem lhe escrever uma carta ou sem ao menos lhe telefonar? Ficou ali parada, olhando para ele sem dizer nada. Até que ele perguntou:
_ Como está?
_ Bem..., quer dizer na medida do possível.
_ O pior já passou, menina. Tudo ficará bem, lembra-se?
Ela pareceu meio atordoada:
_ Lembrar-me? Do quê?
Ele deu uma risada.
_ Ah, Matilde, Matilde! Você continua a mesma cabecinha de vento. Não lembra- se de que essa era a sua frase preferida?
_ Me desculpe, não me recordo...
_ Nos meus momentos de dor e angústia você sempre me dizia que tudo iria ficar bem, mesmo quando sabia que aquilo poderia não ser verdade.
_ Sim, eu me lembro. Você me chamava de eterna otimista e eu te chamava de eterno pessimista.
Ela sorriu, ele sorriu e ficaram assim por alguns instantes, a ouvir e apreciar juntos a risada um do outro. Então, ele se aproximou da cama dela e sentando aos seus pés, disse:
_ Como está, Tilde? Como está?
Tilde? Nossa! Quanto tempo fazia que ninguém a chamava assim, o marido a chamava de má ou Tilda, mas nunca ninguém a chamava de Tilde, apenas o seu querido primo e amigo João. Deus! Como era bom estar ao lado dele. Sim, porque a presença de João lhe trazia de volta um sopro de juventude, um sopro de vida. Ficou calada envolta em seus devaneios. João disse meio impaciente:
_ Continua a mesma garota distraída de sempre! Não vai me responder a pergunta, cabecinha de vento?
_ Eu já lhe disse que estou bem.
_ Não importa o que você diz, Tilde. Você precisa acreditar no que fala. A esperança é o que dá cor e sentido as palavras.
_ Sim? Ah, já vem você com essas frases de efeitos!
_ Você costumava gostar delas antigamente.
_ Sim, é verdade, né? Ainda me lembro daqueles romances que você escrevia em cadernos de brochura para eu ler e ficar sonhando com o príncipe encantado.
_ É mais esse não era seu único sonho...
_ Não, meu maior sonho era ser mãe.
_ E você conseguiu. Agora, Tilde, me diga, você é feliz?
_ Apesar de todo pesadelo, que estou passando, posso dizer que sim. Tenho um marido que amo e que me ama, tenho uma linda filha; sou feliz cuidando deles.
_E quem cuida de você, Tilde?
_ Minha mãe, ela não sai daqui, e agora eu tenho você. Promete que não vai sumir mais, promete?
João fez uma cara de desagrado e disse:
_ Você sabe que eu detesto promessas.
_ Eu sei, mas eu preciso que me prometa.
João suspirou:
_ Sim, Tilde, eu prometo, mas agora eu tenho que ir.
_ Ah, mas já? Ah, não, antes de ir, me conta uma estória para eu poder sonhar.
João contou uma estorinha sobre uma menina cega que era impedida de ficar com o homem que amava pela sua família. Matilde adormeceu e ele foi embora.
No dia seguinte, Matilde acordou com a mãe passando as mãos pelo seu rosto.
_ Filha, você precisa acordar, é hora de tomar seu remédio.
Matilde tomou o remédio e disse:
_ Mãe, você acha que eu vou vencer essa guerra?
_ Claro, que sim, querida. Deus está conosco!
_ Mãe, ontem eu recebi uma visita maravilhosa!
_ Visita? Mas, ninguém me falou de visita alguma.
_ Foi o João, mãe. Ele estava tão diferente, mais forte, mais confiante, nem parecia aquele garoto mirradinho de outrora!
A mãe estremeceu e disse:
_ Não diga bobagens, meu anjo. Se João ficou longe por tantos anos porque apareceria agora? É melhor descansar.
_ Por que você não gosta que eu fale nele, mãe?
_ Porque não é bom, só isso, não é bom.
_ Como assim, mamãe, como não é bom? Você ficou maluca?
_ Filha esqueça isso, sim?
_ Esquecer? Mãe, é assim que você trata as pessoas que ama, esquecendo-as? Pois, eu não. Eu não vou esquecê-lo jamais.
_ Pois deveria, querida, deveria.
Dona Carla se lembrou de algo. Abriu a bolsa, tirou um caderno e o entregou a filha.
_ Toma, foi sua tia Nina quem trouxe.
Os olhos de Matilde brilharam. Nina era a mãe de João. Então aquele caderno só podia ser de seu primo e querido amigo. Agarrou o caderno das mãos da mãe e disse:
_ É dele, mãe, é dele?
_ Sim, é dele, sim.
_ E por que ele não me trouxe pessoalmente, mãe? Por quê?
_ Filha, ele não pode mais...você sabe.
_ Não pode, por quê?
_ Filha, o seu primo João está morto, querida. Ele morreu já faz uns seis meses. Você precisa se conformar.
_ Não, não é verdade, não, não...
Matilde começou a chorar. A mãe a abraçou e disse:
_ Não fique assim, o João não iria gostar de vê-la chorando. Leia a estória que sua tia Nina lhe trouxe. Foi o último romancete escrito por seu primo. Dizendo isto dona Carla saiu, Matilde pegou o caderno e passando a mão por sua capa, se pôs a lembrar de um tempo, em que ainda tinha tempo para sonhar, chorar e se emocionar com um romance. Abriu o caderno e viu que o título da estória era “Amizade sem fim”. Virou a página e viu que havia nela uma dedicatória destinada a ela. Era assim:
“Dedico esse romance àquela que foi a primeira leitora de minhas estórias: Matilde, querida prima e grande amiga, sei que a vida nos afastou, mas eu nunca deixei de amá-la como a um irmão. Talvez, quando ler essa última estória, eu já não esteja mais de corpo presente nesse mundo, mas lembre-se que eu sempre estarei vivo nas estórias que eu escrevia para você sonhar e mais ainda sempre estarei vivo em seu coração. E não se esqueça, tudo ficará bem. Sim, tudo ficará bem.”
Matilde fechou o caderno ainda emocionada com aquelas palavras, tinha estado tanto tempo na escuridão, mas agora, de repente, aquele sentimento de desconsolo desapareceu, e, subitamente um sentimento de paz a invadiu. Não sentia mais tanto medo e pavor: estava serena, calma, quase tranqüila. Fechou os olhos e abraçada ao caderno de seu falecido amigo pensou que ainda haveria esperança. Amanhã seria um novo dia e tudo ficaria bem. Fechou os olhos e adormeceu. Adormeceu como há muito tempo não fazia e sonhou como há muito não fazia.