Éden
Carro encostado na calçada. Fechar os vidros. Desligar o som. Virar a chave. Pegar a carteira, pasta do trabalho, chave de casa. Sair do carro, apito irritante, esqueci o farol aceso. Que saco! Acontece. Um passo. Dois passos. Quem foi que inventou aquele aparelho que vem em alguns tênis que contam os passos? Infinitos passos. Contar o interminável. Invenção estúpida. Não aguento mais esse jardim: grama grande demais, verde de menos, caótica, comida pelas formigas, pisoteada pelo homem, castigada pelo sol, será que existe ser vivo mais infeliz? Arbustos por podar, atraem bichos desnecessários. Quem foi que plantou aquelas azaleias perto do ipê? Azaleia rosa, ipê amarelo: combinação feia e esquisita. Vou ter que limpar todas essas flores que caem desse ipê. Ainda tem aquela orquídea pendurada nele, flor fraca, a beleza não compensa. Ahhh...me esqueci de limpar a fonte, não é culpa minha, tudo fica mais difícil quando tem uma palmeira anã do lado. Se ao menos essas primaveras valessem a pena. Meu vizinho encostado na mureta de novo.
- Boa noite. Como vai?
- Bem e você?
- Tentando levar o que alguns chamam de vida.
Que jardim... Como ele consegue?
- Não foi muito bem no trabalho hoje?
-Como você consegue manter o jardim tão bem organizado? Ele sempre está tão bem podado, a disposição das suas plantas é incrível. Quem fez esse caminho com essas pedras de mármore?
-Você também possui um jardim muito bonito.
-Besteira, o que eu planto morre e o que eu tento matar cresce. Perda de tempo.
Meu tempo perdido deve estar indo para ele, não é possível deixar tudo tão organizado e ainda ter tempo para ficar encostado nessa mureta à noite. Fim de papo.
-Vou entrando, boa noite.
-Boa noite!
Céu nublado, as estrelas estão tímidas ou mesmo elas precisam descansar de vez em quando? Estrelas... Lembro-me do meu avô contando suas histórias. Quantos personagens não se tornaram imortais ao se transformarem em estrelas? Quantas vezes elas não disseram a direção certa para um comandante desesperado que cruzava os sete mares arriscando a própria vida? E quando foi que paramos de olhar para elas? Dezessete, dezoito, dezenove, exatos dezenove passos. Dia cheio, dia corrido. Tenho que tirar os sapatos pra não levar terra desse jardim imundo para dentro. Abrir a porta, fechar a porta. Rotina: sinônimo de escravidão, escravidão passiva, escravidão de toda a humanidade, fato triste. Ainda falam que as pessoas têm que fazer caminhos diferentes todos os dias para ir ao trabalho, ajuda a aumentar o QI: quebra da rotina. Será que alguma vez no mundo pelo menos uma pessoa já testou essa teoria? Hora de dormir. Dia longo amanhã. Rotina...
Acordar! Queria não acordar pelo menos uma vez. Como a morte pode ser algo ruim se não passa do mais profundo e tranquilo sono? Morrer pode ser pior: doloroso. Hora de trabalhar. Tenho hora para tudo, mas não tenho hora para viver. Tempo: bem precioso. Jardim irritante de novo. Não consigo mais olhar para ele. Três. Quatro. Meu vizinho saindo na mesma hora que eu. O contraste de nossos jardins: o dele perfeito o meu destruído. Apenas para ressaltar ainda mais como minha vida é boa. Quatorze.
-Bom dia vizinho.
-Bom dia.
-Qualquer dia você tem que me contar o segredo do seu jardim, tudo o que eu faço dá errado.
-Não existe segredo. Meu jardim não é como você vê. Um dia você vai perceber isso.
-Você diz isso porque nunca prestou atenção no meu, também não prestaria se tivesse um jardim como o seu.
-Tenho que ir.
-A gente se fala.
-Até.
O vizinho era esforçado, tinha um ponto de vista e gostava de mostrar que raramente errava, ele tinha trabalho árduo para fazer, mas sabia que valeria a pena.
Um caminhão de entregas parado em frente à casa do vizinho mudaria a vida do homem, este ainda não sabia disso, aquele estava louco para começar e começou assim que o homem chegou mais uma vez do trabalho, reclamou do próprio jardim como de costume e foi-se deitar. A noite foi longa para o vizinho, mas nem um momento de hesitação, nenhuma queixa, se todos fossem como ele a torre de babel provavelmente estaria pronta antes que Deus percebesse.
O trabalho ficou perfeito: a mureta do homem ficou revestida com um espelho sutil. A cara do vizinho ganhou uma leve expressão de orgulho, amanhã seria sábado, certamente o homem teria mais tempo para observar o jardim. Eu não posso perder isso por nada, pensou o vizinho antes de ter o sono dos justos, sono de quem trabalhou com dedicação.
Sábado, sétimo dia. Para mim o sétimo dia sempre foi domingo. Nada para fazer. Nada de bom para fazer. Muita coisa por fazer. Hora de comprar meu cigarro. O médico me deixou fumar aos sábados. Chave do carro, carteira, isso é tudo. Um. Dois. Três. Três. Três. Porque eu parei? O jardim do vizinho esta diferente. Nunca o vi tão lindo. Tenho que ver mais de perto. Quatro. Cinco.
Nos olhos do homem a grama parecia um tapete de um verde vivo que o convidava a se sentar e gastar um tempo conversando com ela. Os arbustos levemente maiores do que quando foram podados acrescentavam um toque rústico e natural que todo jardim deveria ter. O contraste das azaleias perto do ype dava uma vida impressionante ao ambiente que ficava ainda melhor com as flores que dançaram até se esparramarem cuidadosamente por todo o jardim. A beleza e fragilidade daquela orquídea o cativavam quase como uma rosa cativou um príncipe certa vez. Sede. Ficou com vontade de beber da água que emanava da fonte que certamente deveria ser a própria fonte da juventude e se esconder atrás da palmeira assim que voltasse a ser uma criança. Sentia como se aquele jardim fosse o jardim no qual o primeiro homem esteve e imaginou Deus e Adão deitados lado a lado pincelando estrelas no céu com os dedos e descansando ao fim do sétimo dia. Sentiu todas essas emoções explodirem dentro dele e voltou para seu caminho habitual. Não foi capaz de ver o próprio reflexo no espelho, pois a muito possuía o pior tipo de cegueira: enxergava apenas o que queria.
Meu vizinho. Por que ele tinha que aparecer justo agora?
- Bom dia.
- Bom dia, você esta de saída?
- Vou comprar cigarros.
- Passe na minha casa. Quero te mostrar uma coisa depois.
- Na volta eu te chamo.
Trinta e um. Trinta e dois. Mais do que o normal. Culpa do desvio. Culpa do vizinho. Falar comigo? Convidou para entrar. Quer exibir um pouco do seu jardim. Deveria ter recusado. Melhor não: política da boa vizinhança. Semáforo amarelo. Acelera. Foi por pouco. Padaria. Ainda bem que eu não preciso mais descer do carro para comprar meu cigarro. O caixa já decorou a marca, bom rapaz. Primeira tragada do dia: a melhor. Hora de voltar. Sem surpresas dessa vez, nada de sinais amarelos.
Pela primeira vez o homem entrava no jardim do vizinho, estava ansioso, perdera as contas dos passos, ficou bravo por um segundo. Distraiu-se vislumbrando como seria morar naquele jardim no segundo seguinte e ficou completamente confuso no terceiro segundo. Aquele jardim estava diferente, onde antes se via vida agora se via terra, onde as flores coloriam, agora restavam apenas pedras de mármore improvisadas formando um caminho tortuoso que levava a lugar nenhum. Pequenos tufos de grama lutavam por um lugar ao sol perto da única fonte de água do local: uma torneira que pingava. Ao avistar o vizinho correu em sua direção.
-O que aconteceu aqui? Esta tudo bem com você?
-Não aconteceu nada aqui, não se preocupe.
-Mas o seu jardim mudou completamente em alguns minutos.
-Meu jardim não mudou, ele sempre foi assim. O que você viu agora a pouco foi o simples reflexo do seu próprio jardim nos espelhos que eu coloquei durante a madrugada no seu muro.
-O que? Não entendi, o que eu vi de manhã era o meu jardim? Faz tempo que você colocou esses espelhos?
-Sim, era o seu jardim. Eu coloquei ontem.
-Continuo não entendendo, meu jardim sempre foi tão feio e eu sempre admirava tanto o seu.
-Hoje foi a primeira vez que você foi capaz de enxergar o meu jardim deste lado do muro e foi a primeira vez que olhou o seu como ele realmente é.
O homem entendeu a mensagem. Foi tomado de súbito por um sentimento incontrolável e começou a sentir seu corpo se movendo em direção ao seu jardim. Quis agradecer o vizinho, mas nenhuma palavra foi dita, o vizinho entendia o que estava acontecendo. O homem começou a caminhar lentamente pelo seu jardim, deixou seu corpo cair na grama e começou a vislumbrar as nuvens, este era o seu jardim, era ele quem pincelava estrelas, não tinha ninguém deitado ao seu lado mas sabia que não estava sozinho. Estava em paz. Levantou-se devagar e caminhou até a porta de casa. Ele nunca mais tirou os sapatos antes de entrar.