Lobo
Em uma era muito antiga, um lobo branco caminhava solitário (porque assim ele queria) pelas vastas planices cobertas de neve do norte de lugar nenhum. Era uma região pouco habitada por homens, e, em geral, era pouco habitada por qualquer outra espécie de animal.
Claro que haviam cervos, aves, répteis, várias espécies de roedores, peixes e etc, porém, no geral, as paisagens pareciam cobertas de um grande vazio de vida. O frio era extremo, e perdurava durante o ano todo.
Naquela noite o lobo observou que não muito longe dali havia uma fogueira acesa em um campo aberto. Ao redor do fogo haviam homens, trenós e vários cachorros usados para puxarem os trenós. Eram 16 cachorros grandes, 8 cachorros para cada trenó.
O lobo sabia o que isso significava. Para ele significava comida.
No outro dia já não haviam mais homens nem cachorros. Todos foram mortos.
O lobo branco que havia os visto no dia anterior agora estava com a barriga completamente cheia, e sentado sobre uma grande rocha, no topo de um alto morro, lembrava-se de como havia sido bom comer os primeiros pedaços de carne humana - que era muito mais gostosa que a carne de cachorro - e a deliciosa sensação de morder um humano e poder sentir o sangue quente escorrendo pelos próprios dentes, pela boca, e para todos os lados.
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No outro lado do país, em um lugar em que o lobo branco nunca havia ido, e nem imaginava existir, havia um homem, de idade não revelada, que estava em seu quarto, em um apartamento nos subúrbios de Toronto, ouvindo a música Bob Dylan em seu rádio, em uma seleção gravada com suas músicas preferidas. Em sua mão esquerda estava um baseado, e em sua mão direita havia um copo de whisky. Vale destacar que o whisky era sempre preparado do mesmo jeito: tinha 3 ou 4 pedras grandes de gelo e coca-cola. Era a sua bebida preferida.
O homem estava tendo um momento particularmente bom em sua vida. Possuía um bom apartamento, herdado de sua avó, e um antigo carro Volkswagen, que apesar de ser ano 96, nunca o havia deixado na mão.
Tinha também um bom gosto para livros. Já havia lido mais de 100 em toda sua vida. Seus autores preferidos eram Edgar Allan Poe, J.D. Salinger e Charles Bukowski. Tentava ele mesmo ser um escritor, mas achava que algo lhe faltava.
"O que me falta, provavelmente é o talento."
Era isso o que ele realmente pensava. Um de seus principais objetivos na vida era escrever um livro que chegasse a ser razoavelmente bom. Ele não tinha esperanças de escrever alguma coisa boa, nem algo excelente, apenas achava que poderia escrever um livro razoavelmente bom.
Um de seus problemas era colocar muita expectativa em cima do seu livro que ainda não havia sido escrito. Ele imaginava que pra escrever um grande livro, ele precisava fazer uma grande viagem em sua vida e viver uma grande aventura, para assim ter grandes experiências, e enfim, ter uma grande história para contar.
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Em outro canto do mundo, na França, um jovem estudante universitário debruçava-se sobre um novo texto da faculdade.
Como a maioria dos outros estudantes de ciências humanas (geografia, história, letras, psicologia, etc), este jovem era pobre, e portanto, não tinha muito dinheiro para comprar os livros necessários para estudar.
Naquela época era uma prática comum que os professores colocassem a disposição dos alunos algumas cópias xerocadas dos livros, para que eles pudessem cada um fazer a sua cópia, e então poder estudar normalmente. Claro que realizar estas cópias era algo ilegal. Porém, ninguem dizia nada sobre o assunto, visto que a educação universitária era algo levado muito a sério na França.
Pois bem, lá estava o jovem Jean Baptiste Darbot com sua cópia xerocada do livro "O Grande Massacre de Gatos" do historiador francês Robert Darnton. Jean Baptiste estudava História. Estava no segundo ano da faculdade. Ele ainda não havia lido aquele texto em particular, mas possuía um belo sorriso no rosto ao observar com seus grandes olhos azuis, a sua cópia xerocada de "O Grande Massacre de Gatos".
Agarrava-o com as suas duas mãos, observando seus polegares e suas unhas recém cortadas. Então aproximou o texto do seu nariz, e deu uma boa cheirada no papel.
"Uhmmmmm! Adoro cheiro de papel recém xerocado!" Dizia ele sempre que pegava uma nova cópia de um livro nas mãos.
Realmente não era um pensamento muito genial, e, ao longo dos seus anos na faculdade, seus colegas e professores costumavam achar que Darbot era meio imbecil ou meio retardado, ou talvez um pouco dos dois.
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Ana observava o espelho com um olhar analítico. Olhava para o seu próprio corpo, e sabia que ele já não era mais o mesmo. Estava nua em frente ao espelho, não usava calcinha nem sutiã, não usava chinelos e nem uma toalha enrolada sobre a cabeça. Tinha acabado de sair de um demorado banho quente.
Observava o seu corpo por inteiro em um grande espelho localizado no seu quarto em uma casa no interior do sul do Brasil. Em um relance, podia-se ver a ponta dos seus pés e o topo da sua cabeça.
Ela viajava pelo seu próprio corpo com seus olhos através do espelho.
Da ponta dos seus pés ligeiramente tortos, passava aos calcanhares e então para a sua canela fina e branca, e observava com um grande desapontamento os pelos que insistiam em crescer em suas pernas. Prestava bastante atenção aos seus joelhos aparentemente disformes, pontudos e duros, e não sabia se aquilo era normal. Tentava esquecer os joelho e olhava para as suas coxas finas, e seus pelos pubianos negros. Achava que nada daquilo estava combinando. Ela não sabia o que fazer com os pelos pubianos. Deveria raspar ou deixar a mata atlântica crescer? Alguem além dela mesma iria notar a diferença? Era uma grande questão a qual ela nunca conseguia encontrar a resposta certa.
Passava então a observar a sua bunda magra, empinando-a para ver ser poderia parecer maior. Desistia da bunda. Passava então a olhar a barriga, seu pequeno umbigo, seu peito, seu par de seios, seus braços longos e magros, suas mãos e dedos finos, e suas veias aparecendo sob a pele, que lhe davam um aspécto que não sabia se era de doente ou de anêmica, mas sabia que aquilo realmente não era nada bonito.
Olhava então para seus ombros não muito caidos, mas também não muito levantados, e para os longos ossos saltados que ligavam o centro do seu peito até seus pequenos ombros.
"Por que esses ossos são tão saltados?" Ela se perguntava indignada com a própria falta de sorte em ser bonita.
Porém, acima de todas estas questões, ela se perguntava como é que a magreza excessiva poderia ser considerada algo bonito.
A única resposta possível que ela encontrava era que provavelmente era muito difícil manter uma dieta saudável longe de comidas gordurosas e deliciosas. Ou seja, para a maioria da população mundial, era difícil fazer regime. Mas, felizmente ou infelizmente, ela era uma magra natural, daquelas garotas que não gostam de comer, e que não precisava fazer nenhum esforço para manter aquela silhueta que mais lhe parecia de um doente do que de alguma top-model.
Por fim, ainda nua em frente ao espelho, ela analisava se o seu rosto e o seu cabelo negro bastante seco combinavam com o resto de seu corpo. Pensava que, apesar de tudo, combinava sim.
Ela se considerava, ao menos, bonita de rosto. Tinha poucas e raras espinhas, longos olhos azuis naturalmente delineados, um nariz pequeno, sombrancelhas finas, orelhas definitivamente normais, e duas pintas negras que pareciam estratégicamente colocadas logo abaixo na direita do seu olho direito. Ela sabia que essas pintas eram o seu toque de charme, que lhe diferenciava das outras garotas.
O que ela não queria era que o resto do mundo soubesse de suas inúmeras outras pintas negras espalhadas por todo o seu corpo, especialmente no peito, na lateral do corpo, nos braços e nas costas.
Ela realizava esse ritual em frente ao espelho praticamente todos os dias, por quase meia hora, logo após os seus banhos noturnos. Trancava-se em seu quarto, e só saia assim que sua analise estivesse completa, ou quando a sua mãe lhe chamava para vir jantar ou comer algum pão à mesa.
O que ela percebia, e era uma das únicas certezas que ela tinha sobre si mesma, era que era excessivamente pálida, e estranhamente magra. Não era uma magreza bonita. Seu corpo era desproporcional, e parecia até meio torto, dependendo do ângulo em que olhava. Seus seios quase não existiam, e o que mais chamava atenção neles eram os bicos com coloração marrom, com aureolas excessivamente grandes e bicos pontudos.
Seu medo de ficar nua na frente de qualquer pessoa era muito maior do que o seu medo de baratas, ou de ficar virgem até os seus 30 anos.
(continua)