ROTINA

ROTINA

BETO MACHADO

Otávio já se afeiçoava com o silencio estratégico, invasor das noites turbulentas, testemunhas temporais de suas brigas com a companheira insegura e ciumenta. Era briga por chegar depois do horário de costume; era confusão quando ela cismava que o cabelo do marido cheirava a cigarro, pois ele não fumava; era fuzuê garantido se ele chegasse e ficasse em frente ao portão da própria casa, papeando com vizinhos, sem ir falar com ela primeiro...

Aquela dura rotina era alimentadora de uma convivência estranha, mas de aparência sólida e estável.

Os assuntos discutidos, acaloradamente, às noites eram o combustível para sua reflexão nas viagens de ônibus e de metrô, durante a semana.

Sua concentração nos fatos ocorridos na casa que lhe servia tão somente de dormitório era de tal monta que, ao se acomodar no vagão do metrô, não percebia a passagem das estações, nem registrava em sua memória auditiva as informações emitidas pela voz sensual da locutora, seguida de um sinal sonoro irritante. Seu cérebro estava programado para liberar tão somente os acontecidos na noite anterior na casa de Otávio.

Estação Cinelândia. Otávio sai pela Santa Luzia. Trabalho normal. Almoço no restaurante de costume. Mesmos amigos, mesmos debates sobre futebol. Otávio demonstra descrença na conquista da copa do mundo. Contestado, veementemente, pelos otimistas de plantão.

---Nosso treinador é uma topeira.

---Mas o time é bom, cara.

---Aí é que o vexame cresce de proporção.

---Deixa teu pessimismo de lado e bota fé que dá.

---A fé da torcida não sabe fazer gols, nem sabe defender as bolas do adversários.

---Ô, pára. Tô legal com o teu negativismo, Otávio.

Norma, sua esposa, tomada totalmente pelos afazeres domésticos que lhe absorve todo o dia e algumas horinhas da noite, não demonstra lembrar das discussões com o marido, ao interagir com as vizinhas. Ela acompanha, através de seu smart fone ou de seu PC, as variações de preços dos cosméticos e dos produtos destinados ao trato da beleza feminina. Suas amigas a têm como um ancoradouro, quando se encontram à deriva no mar da dúvida, sem saber o quê ou onde comprar. É uma exímia pesquisadora.

Certa vez, Otávio sugeriu a Norma que ela abrisse uma micro empresa no ramo de compras coletivas, mas ela atendeu a seu sexto sentido e se livrou das possíveis dores de cabeça que adoram se alojar nos empreendedores despreparados. Bem que ela poderia ter se matriculado em um curso de empreendedorismo, ministrado por uma dessas ONGs especializadas no assunto. Porém, decidiu que não gostaria que seu “robi” se transformasse em atividade profissional lucrativa em detrimento dos seus momentos de lazer, tão indispensáveis a sua felicidade.

Otávio sai do restaurante para retornar ao trabalho e sente que seu aparelho digestivo não se agradara de alguma coisa inserida no seu bolo alimentar. Por guardar sempre na gaveta da escrivaninha alguns anti ácidos Otávio não deu bolas pra indisposição gastro-hepática. Porém, o que seu racional não digeria, de maneira alguma, era o fato de ter sido chamado de negativista.

As copas de 82, 86 e mais recentemente a de 98 tatuaram em Otávio um sentimento de desconfiança que anula toda e qualquer tentativa sua de ser otimista em relação à conquista da Copa do Mundo pelo futebol brasileiro. “2002 foi um ponto fora da curva, ponto esse que já retornou pro seu lugar: a mediocridade”. Isso ele afirma em qualquer roda de amigos, se o papo é futebol brasileiro. E diz mais: “A mediocridade do jogador brasileiro se instalou em duas praças. Aqui dentro e lá fora. Aqui, tecnicamente; lá fora mental e emocionalmente”.

Os jogadores que atuam no Brasil estão presos a esquemas táticos arcaicos que só funcionam em jogos entre os nacionais. Nosso único alento é que de vez em quando surge uma pérola como NEIMAR. E sempre que isso ocorre, o destino da pedra preciosa é o exterior. E essa atração exercida pela praça externa é fatal por nosso esporte mais popular.

Não raro, ao se aproximar a copa do mundo, nossos jogadores selecionáveis, que atuam no exterior se contundem.

O que passa na cabeça do torcedor mais antenado nos acontecimentos é que não há um cuidado especial por parte dos atletas selecionáveis para preservar o que simboliza um Patrimônio Nacional, que são as vitórias da SELEÇÃO BRASILEIRA DE FUTEBOL.

A esperança e a fé no sucesso embalam o coração da NAÇÃO. Em 2014 não só o coração, o BRASIL estará de corpo inteiro nessa empreitada que é nossa. No nosso chão. Dos recônditos e bucólicos cantões do Amazonas às serras e Pampas Gaúchos.

Fim de expediente. Otávio, já refeito da indisposição, digestiva se dirige para o metrô, no seu penoso retorno à casa. Observa uma aglomeração na Praça Marratma Gandi e vai conferir. Era um grupo de simpatizantes pelo regime militar se manifestando e tentando convencer os poucos presentes ao redor, incluindo alguns “cracudos”, moradores de rua, pivetes, observadores de terno e gravata, turistas incautos, ostentando jóias e câmeras. A linguagem homogênea dos oradores, que se alternavam, levou Otávio a perceber que se tratava de reclamos nostálgicos de oficiais anafitalinados na reserva das forças armadas, os famosos “viúvos da ditadura”.

Cada tema explanado pelos “cabeças brancas” da caserna produzia grande indignação em Otávio, o que o impele a ir embora, antes que lhe viessem náuseas.

No interior da estação ele não esboça nenhum tipo de esforço para conseguir lugar em um assento do vagão. Já fazia parte do time dos resignados, sujeitos a empurrões, pisões, esbarros de mochilas, fedores de sovacos mal lavados, cotoveladas dos que dormem, em pé, pendurados nos estribos, sem contar com os odores de flatulências. Essa rotina, a pesar de cruel para muitos, não lhe causava mais dores. Era como se todos aqueles transtornos cotidianos fizessem parte de um pacote, introduzido no seu organismo, por osmose e por simbiose, e que seu metabolismo se visse na obrigação de processar, de maneira que o corpo absorvesse tudo sem traumas, sem rejeições.

Roberto Candido Machado
Enviado por Roberto Candido Machado em 23/04/2014
Reeditado em 24/04/2014
Código do texto: T4779612
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