A TRISTE HISTÓRIA DE FURNARIUS RUFOS E SUA PALOMA BRANCA
Contam alguns poucos bichos sobreviventes, antigos moradores de uma floresta extinta que fica do lado de lá, que um certo jovem voador de nome Furnarius rufos, inteligente que só, embora franzino e calado, era muito admirado pela bicharada, tanto por quem vivia na copa das árvores, pulando de galho em galho, quanto pelos mais rasteiros, quadrúpedes, peçonhentos ou invertebrados, rápidos ou lentos. Até mesmo sobre os seus próprios predadores ele também tinha lá seu feitiço e seu veneno, tinha seus argumentos... ficção, números, filosofia. Impressionava bem!
Voava encurvado. Olhava curto e em poucas direções para evitar contato mais íntimo e inflamado com outras almas desiguais. Talvez por insegurança, quem pode dizer? O fato é que o distinto jovem e intacto mancebo, nos mais áureos dias de seus vinte e poucos anos, despertou no laço de uma certa armadilha da vida e ficou preso na melhor armadilha da natureza: encantou-se com requintado ardor e desejo de perdição por uma jovenzinha Paloma Branca de outros costumes e de outro tamanho, que rodopiava e falava muito, brincava e se divertia a valer naqueles arredores, voava sempre alto e ao contrário dele, circulava em muitas direções. Subia, descia, pulava, gritava, abraçava e cantava sem limites e com toda ousadia, própria de sua idade e natureza.
Certo dia, feito água fria em frigideira quente, Furnarius e Paloma se tocaram e seus olhares se fundiram. Suas almas apenas levemente presas em seus dois corpos, plasmaram e se cruzaram, mergulhando uma dentro da outra. O eco resultante desse mágico encontro ultrapassou as barreiras naturais e morais do graúdo som da floresta e, ao final, flambou gotas de suor que jorravam de si em perfeita mistura de muitos sabores e odores sem contas de finas lágrimas de dor e de amor, derramadas na constância da dança do acasalamento que durou apenas um inverno, e por isso mesmo não foi suficiente para desembaraçar os três nós do tempo de espera que marcam a casca das árvores: coragem, verdade, paciência.
Assim como todos os machos apaixonados, cumprido o ritual da dança do acasalamento, o jovem disperso já não tinha tempo nem espaço de honra, e a Paloma Branca desenfeitada de suas quentes camélias, caiu do galho e foi levada para servir em outro quintal, sem varal.
Voaram para outros mundos ao preço de dura garimpagem. Enfrentaram lotação e gaiolas de outros humores, rumo ao futuro. Mas que futuro? Mal sabiam eles que as mãos do tempo cuidariam de encerar os sentimentos verdadeiros para durarem muito ou toda uma vida, feito fruta fresca que brilha meses fora do pé, protegida contra os vermes.
Nem o tempo, nem os golpes da verdade rompem essa grossa camada de cera fixada sobre o pueril enlace, agora para sempre protegido e presente nas lembranças de dois passados principais, mas que jamais deixaram de ilustrar as muitas memórias e cirandas coloridas cantadas em tocas, cavernas, tabernas e mesas de bar por tantos outros bichos que enxergaram sem ver e ouviram sem escutar.
Muitos invernos passaram escavando muros, erguendo abismos e esculpindo sentimentos.
A ação corrosiva do tempo somada aos comuns efeitos implacáveis da distância, não alcançaram resultado eficaz para fazer adormecer a história de Furnarius e Paloma. Ao contrário disso a intimidade se manteve intocada como se jamais tivessem ficado um único dia longe um do outro, embora marcados e vigiados.
De olho cru não vejo a lua
Alma póstuma e nua
Furnárius sem poda
Perdido na rua
Sinto seu canto na brisa que alisa
Sorriso acanhado na face precisa
Destino refeito em cor decantada.
voo de Furnarius no céu da jornada.
Eis que Paloma a senda atravessa
Cheia de graça, magia expressa.
Forte paixão vibra em compasso
Brinda com amor os versos que faço.
Entregue ao véu e a fumaça
Um corte sangra o tempo que passa
Olhar que fita a rude verdade
Em pleno sorver da pura saudade.
Sinto seu canto na brisa que passa
Na face tocando trazendo alegria
No peito um acorde, garganta de ouro
Leva pra longe lembranças de um dia
Foge Furnarius nas asas da sorte
Paloma de branco vestida em flores
Saltitam vibrantes no céu tão azul!
mesclando segredos, odores, amores
Fumaça dispersa, claro dia
Cortinas abertas, palco aberto
Drama na vida fora do ninho
Risco de morte, Paloma perto.
No calor do dia meus raios me queimam
Céu tão vazio no horizonte proclama
Gritos de dor pensamentos teimam
Brilho e fulgor nas asas Paloma.
Voando longe, baixinho percebo
Vazio da espera ao largo das eras
Sorriso lembrança, foi-se bem cedo
Partiu de fininho, triunfo quimeras.
Meu canto ficou
Mais triste e cansado
Presente pousou
No tempo passado.
Futuro, onde fica?
Numa esquina distante
Talvez inaudita.
Mas a fé é pujante.
Pena solta pelo espaço flutua
Páginas livres de histórias presas
Olhos lindos refletindo a lua
Destino atado a porções nesgas.
Canto em palco de noturno céu
Deslocado, solitário sem Paloma
Tolhe o voo em árduo fel.
Destino solto, “juízo mouco”
Nada de novo debaixo do céu.