O VIZINHO

O VIZINHO

“FOI VENDIDO O ÚLTIMO APARTAMENTO DO NOSSO CONDOMÍNIO,” COMENTAM COMIGO PELA MANHÃ, ENQUANTO EU RECOLHO A CORRESPONDÊNCIA. (O apartamento recém-vendido é ao lado do meu, onde moramos eu e meu gato Cristovan.)

QUEM SERÁ O PRÓXIMO MORADOR, DE ONDE VEM, O QUE FAZ? QUEIRA DEUS, SEJA ALGUEM COM QUEM A CONVIVÊNCIA POSSA SER TRANQUILA. MORAR LADO A LADO PODE TRAZER SUPRESAS, NEM SEMPRE FELIZES...

A NOTÍCIA VINDA DEPOIS DESPERTA PREOCUPAÇÕES. “JÁ SOUBE, LIZANDRA? VIRÁ UM MÚSICO MORAR AI, AO SEU LADO!” (Vamos ter um músico como vizinho, comento com Cristovan! Converso com meu gato como se ele fosse gente. Penso que ele me entende: Cristovan ronrona, fita-me curioso, com seus esplêndidos olhos azul safira, espreguiça-se. Com seu jeito indolente parece dizer “Ora, deixe acontecer...” Se for um baterista, Cristovan, reflito, o que vai ser do nosso silêncio? Mas meu pequeno companheiro já adormeceu. Sua almazinha de gato vive um dia de cada vez. Amanhã... vamos ver...)

OS DIAS PASSAM; ALÉM DOS DECORADORES... NINGUEM... O NOVO VIZINHO PARECE NÃO TER PRESSA EM MUDAR-SE.

VIAJAMOS EU E CRISTOVAN. VAMOS ASSISTIR AO CASAMENTO DE MINHA IRMÃ CAÇULA. UMA SEMANA JUNTO À FAMÍLIA: UM CARROCEL DE NOVIDADES, ABRAÇOS, MIMOS,VISITAS, MOVIMENTO, FESTA, MUITA COMILANÇA... (vou engordar horrores) CRISTOVAM, CERCADO POR OUTROS NOVOS CARINHOS, A TODOS ENCANTA COM SEU OLHAR AZUL SAFIRA.

RETORNAMOS EXAUSTOS; NA CHEGADA, UM SOM NOS SURPREENDE: NO APARTAMENTO VIZINHO ALGUEM TOCA UM INSTRUMENTO. FLUI, NO AR, UMA SUAVE MELODIA. Á NOITE ADORMECEMOS OUVINDO SHUBERT, BRAMNS, SHUMANM... QUEM DIRIA...

O QUE SEI DO VIZINHO ME VIERAM CONTAR. MORAMOS TÃO PRÓXIMOS E NÃO O ENCONTREI. APENAS OUÇO OS SONS QUE TIRA DE SEUS INSTRUMENTOS. DISSERAM-ME QUE É ESPECIALISTA EM SOPROS: CLARINETE, FLAUTA, TROMPA, OBOE... APRECIO AS PEÇAS QUE NELES EXECUTA, SONATAS, VALSAS, PAVANAS... ISSO ME BASTA.

QUANDO ESCOVO CRISTOVAN ELE SE ENTREGA MACIAMENTE ÀS MINHAS ESCOVADELAS ENÉRGICAS, MIANDO BAIXINHO DE PURA FELICIDADE. É O QUE FAÇO AGORA, QUANDO O INTERFONE TOCA INTERROMPENDO NOSSA INTERAÇÃO MATINAL. ( espere, Cristovan, digo, e vou atender.)

“BOM DIA, SOU HECTOR, SEU VIZINHO. DESCULPE INCOMODAR TÃO CEDO... “ ( o som daquela voz, inexplicavelmente, me tira o fôlego)”COMO SE CHAMA? ELE CONTINUA”( Lizandra, repondo, com um leve suspiro.) “LIZANDRA, LINDO NOME... MAS VAMOS AO FATO: VOCÊ PODE ABRIR PARA MIM O PORTÃO SOCIAL? NÃO SEI COMO ENTRAR, PERDI AS CHAVES...” (aciono o botão eletrônico, e destranco o portão para o vizinho. O som da sua voz tirou-me o chão. Cada palavra que pronunciou, aos meus ouvidos, deu-me a sensação de um manso escorregar de água sobre musgo. Embora audível e clara os sons repercutiram como sussurros.) Seus passos se aproximam e abro minha porta.) ELE SE DETEM, ADIANTA-SE, SORRINDO, ESTENDE A MÃO, “MUITO PRAZER, AGRADEÇO A GENTILEZA, PERDOE O INCÔMODO, SOU UM DESASTRADO.”( recupero-me da emoção, aperto a mão que me estende. Tenho duas cópias da chave, digo, vou ceder-lhe uma... Cristovan se aproxima. Pego-o nos braços, ele se aninha, talvez esperando que logo voltemos às escovadelas interrompidas. Vou pegar a chave extra e a entrego ao vizinho) “OBRIGADO, IREI AO CHAVEIRO TIRAR UMA CÓPIA.”( o eco de sua voz me acompanha; doce, fluida, e eu me entrego ao seu feitiço.)

SE ME PEDISSEM PARA DESCREVER HECTOR, MEU VIZINHO, EU DIRIA: TEM BOA ALTURA, TEZ PÁLIDA, OLHOS ESCUROS E ATENTOS; DIRIA QUE TEM MÃOS LONGAS E FIRMES, GESTOS TRANQUILOS... MAS, SE ME PERGUNTASSEM QUAL DESSES ATRIBUTOS EU ELEGERIA COMO ESPECIAL, TERIA A DIZER QUE OS VEJO COMO QUALIDADES COMUNS.

MAS DESDE AQUELA MANHÃ NÃO CONSIGO REPRIMIR O DESEJO INTENSO DE OUVIR SUA VOZ. ANSEIO PELOS MOMENTOS EM QUE POSSO OUVI-LA, MESMO QUE SEJA NUM BREVE CUMPRIMENTO, NUM COMENTÁRIO BANAL.

DISTRAIO-ME, PROPOSITALMENTE, E VÃO FICANDO SEM RECOLHER OS JORNAIS, A CORRESPONDÊNCIA. DEIXO ESQUECIDOS, OS LIVROS QUE LEIO, NOS BANCOS DO JARDIM. ENCONTRANDO-OS, ELE, MEU GENTIL VIZINHO, OS RECOLHE, OS VEM ENTREGAR. NESSES MOMENTOS ENTABULAMOS UMA PROSA DE MINUTOS; MINUTOS EM QUE MEU CORAÇÃO, EM TRANZE, DESPENCA NO MEU PEITO. EMBALO-ME NO ENCANTO DE SUA VOZ SONORA, MANSA, COMPASSADA, QUE PENETRA OS MEUS OUVIDOS MELÍFLUA, INDESCRITÍVEL, ENVOLVENDO-ME INTEIRA.

TALVEZ CRISTOVAN SE RESSINTA COM O ESTADO EM QUE VIVO, DE EXPECTATIVA E ENLEVO. ÁS VEZES ESCAPA DOS MEUS BRAÇOS DISTRAIDOS E VAI ESCONDER-SE...( EU NÃO SABIA ONDE... AGORA SEI:) MEU GATO, DE OLHOS AZUL SAFIRA, ENTRA, SEM SER CONVIDADO, PELA JANELA SEMPRE ABERTA DO APARTAMENTO VIZINHO. HECTOR O TRAZ, UMA TARDE, Á MINHA PORTA: “AQUÍ ESTÁ SUA GATA MANHOSA”... NÃO É UMA GATA, CORRIJO, É UM GATO, CHAMA-SE CRISTOVAN. “OH... HECTOR ADMIRA-SE, É UM GATO!...,E CONTINUA: ”SEU MANHOSO GOSTA DE DORMIR ENTRE AS PATAS DE LAILA, MINHA CADELA BASSETHOUND.”

DESCULPO-ME: PROMETO QUE TENTAREI EVITAR QUE MEU GATO VOLTE A INCOMODÁ-LO E TAMBÉM A LAILA, COM CERTEZA.

“NÃO, ELE NUNCA INCOMODA; MANHOSO É SEMPRE BEM-VINDO, E LAILA POSSUI UM FORTE INSTINTO MATERNAL. VIM TRAZE-LO PORQUE VOU ME AUSENTAR POR ALGUNS DIAS E LAILA VAI PARA O HOTEL DO PET SHOP.

NAVEGO FASCINADA NAS SUAVES ONDAS DE SUA VOZ, ENQUANTO ELE CONTA QUE VAI SE APRESENTAR EM RECITAIS NUMA OUTRA CAPITAL.

(O FUNCIONÁRIO DO PET-SHOP VEM BUSCAR LAILA, E SAI COM ELA, PUXANDO-A PELA GUIA. )

LAILA, COM SUAS PERNAS CURTAS, SEU CORPO PESADO, DE PELAGEM BRANCA SALPICADA DE MANCHAS CASTANHAS, DEIXA-SE LEVAR COM PASSOS INDOLENTES.

O VIZINHO TAMBÉM SE VAI COM SUA BAGAGEM DE INSTRUMENTOS. PASSA POR MIM, MURMURA MEU NOME COM SUA VOZ MUSICAL, EXPRIME SUA DESPEDIDA. (E MAIS UMA VEZ, MEU CORAÇÃO DESPENCA) LANÇA UM OLHAR PARA CRISTOVAN: DIZ COM UM SORRISO, ATÉ A VOLTA, MANHOSO.

(Manhoso!, repito para meu gato, aninhado em meus braços. Você tem um apelido! Cristovan ronrona, dá uma piscadela com seus indecifráveis olhos azul safira e volta a dormir...)

hortencia de alencar pereira lima
Enviado por hortencia de alencar pereira lima em 21/04/2014
Código do texto: T4777416
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2014. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.