A Mulher e a Casa

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Cansados e embaçados olhos lampejados de um tênue azul desbotado fitavam a janela de um canto da escura e empoeirada sala que exalava um nauseante cheiro de mofo e morte. Nem um músculo se movia, a não ser um piscar preguiçoso das pálpebras enrugadas, e o ir e vir do peito ao ser embalado pelas ondas de ar. A envelhecida figura encurvada que definhava sobre a antiga e trôpega cadeira de carvalho parecia fundir-se com o ambiente ao redor.

A quase centenária proprietária só não ultrapassava em dias a casa, se é que as paredes em ruínas que ladeavam a figura solitária podiam assim ser chamadas. Não havia nenhuma companhia para ela. Não havia nenhuma só alma vivente a menos de quinze quilômetros de sua isolada propriedade. Nos raleados fios gris de seus cabelos, e na face curtida pelas mãos do tempo em dezenas de linhas profundas, apresentava o peso da idade de alguém que já viveu o bastante, e nada mais deseja na terra a não ser aliviar o fardo da velhice. Nos olhos encovados e vazios refletiam lembranças de dias longínquos onde aquele santuário de cinza e gelo outrora com mãos mornas e braços firmes e lisos acalentara a vida que surgira milagrosamente de seu corpo cálido.

A sombra solitária envolta pelo negrume da casa decrépita e sem vida, vivia seus dias tristes, dia após dia, ano após ano, condenada a vagar pelos corredores escuros, onde mesmo durante o reinado do astro diurno, somente alguns fiapos de luz aqui e ali ousavam penetrar por entre as aberturas das janelas cerradas para o resto do mundo. Como urge o tempo, ninguém, por melhor imaginação que tivesse, jamais conseguiria imaginar que aqueles tijolos enegrecidos e estéreis testemunharam em seus melhores dias os mais esplêndidos momentos de felicidade que alguém poderia viver deste lado da eternidade.

O amado marido deixara a mãe com seus quatro filhos (os outros cinco já casados), quando com um débil afago na face da esposa fechou para sempre os olhos. Os três meninos tornaram-se homens, e como os outros, partiram para iniciarem sua própria família. Da mesma sorte a caçula – a menininha que vira brincar; aquela que com um beijo na bochecha rosada despedia-se todas as noites, e que vez ou outra levantava-se pé ante pé, no silêncio da noite para velar por seu sono; a última a abandonar a casa – se fora, fazia um punhado de anos, para nunca mais voltar. Até mesmo seu cão, que lhe fizera companhia durante os anos mais difíceis, agora era apenas um amontoado de ossos sob a sombra de uma jovem e robusta árvore espraiada.

Nenhum telefonema, nenhuma carta, tampouco palavra alguma fora para ela direcionada por aqueles por quem ela dera a vida; e aos quais dera ela vida. Não os culpava. Decerto teriam eles assuntos de maior importância com os quais se preocupar que com uma velha sem graça e mal humorada que não representaria mais que um fardo para quem quer que fosse.

O som de passos na escada violou a quietude sepulcral do silêncio que com mãos de ferro dominava aquelas paredes. Pés apressados e inquietos desceram de par em par os degraus e ocuparam seus assentos na mesa, onde uma mulher bem-apessoada e portadora de uma singela e natural elegância serviu do líquido escuro e fumegante as xícaras vazias. Nos quatro cantos da terra nunca se viu tal vivaz e encantadora imagem como a sua. Quando todas as boquinhas se puseram em movimento, e migalhas de pães macularam a toalha surrada, mas asseada, que fora estendida sobre a mesa naquela mesma manhã, a jovem – de cabeleira encaracolada castanha brilhante e repartida, recolhida com esmero atrás da cabeça, e olhos amendoados de um azul sem igual – sentou-se ao lado de um homem um pouco mais velho, mas não por isso desprovido de atrativos, e serviu a si mesma.

O homem em questão resolveu então deixar o jornal de lado – onde em um ritual matinal ele ficava entretido durante generoso período de tempo – , e antes verter o primeiro gole da bebida, pousou a mão grosseira sobre a da jovem, que embora delicada tinha a palma ressecada e endurecida pelo trabalho doméstico. As feições endurecidas se atenuaram um pouco, somente um pouco, quando os olhos de ambos encontraram-se, e logo o homem retomou sua postura de autoridade masculina, como se com isto não quisesse mostrar aos filhos nenhuma debilidade.

Aquele foi um dia dentre tantos outros em que os afazeres da casa e o cuidado das crianças tomaram todo o tempo da esposa. Os mais velhos cedo se puseram na longa e familiar jornada até a escola no pequeno povoado mais próximo. O senhor da casa, como de costume fora ganhar o sustento na labuta diária na cidade, onde vendia os frutos da terra, leite e queijo de suas vacas mirradas. A mulher estendeu uma manta no chão da varanda e deixou os dois filhos menores aos cuidados do maiorzinho em posse de alguns carrinhos de madeira feitos por seu progenitor. A figura materna, com toda a graça feminina desdobrava-se para lá e para aqui com todo o tipo de tarefas que se pode imaginar em uma casa onde há pouco dinheiro e muitas bocas para alimentar.

No fim do dia, quando o sol a muito fora repousar, após colocar a cria par dormir – com os estômagos cheios da sopa de vegetais sem carne que ela com um tempero aqui e outro ali fizera tudo o quanto pôde para agradar aos pouco exigentes paladares – uniu-se ao marido no leito modesto do casal. O galante cavalheiro então entregou a senhora de seu coração um embrulho amassado que a esposa recebeu com um sorriso e os olhos cheios de ternura. O presente era o mais belo que já recebera em toda sua simplória vida. Tratava-se de um vestido encantador, como os ditames da moda, o mais elegante que ela já vira. O tecido não valia muito, mas a nobreza do presente ultrapassou todos os outros, dos mais valiosos, que viria a receber ao longo dos anos. Após trocarem palavras de amor, beijaram-se; e daquela noite, depois soube que fora concebido seu quinto filho, o qual com expectativa receberam, como um bálsamo em tempo oportuno, que lhes secara as lágrimas derramadas pela perda recente do primogênito.

Nos anos que se seguiram o marido viria a prosperar e a vida tornara-se mais cômoda. Os agrados singelos transformaram-se em ricos e ostentosos presentes. Mas aquele vestido simples de cor azul (dissera ele que para combinar com seus olhos), seria algo de que a mulher nunca viria a se esquecer; e aquele dia, a melhor lembrança de sua vida.

Com o corpo miúdo envolto em metros de tecido azul – folgado demais em sua figura frágil e magricela – que em todos aqueles anos cuidadosamente guardara como um tesouro para a posteridade; os olhos inertes, fixos no vazio, a mão ressequida caiu frouxa ao lado do corpo.

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Raquel MS
Enviado por Raquel MS em 15/04/2014
Reeditado em 15/04/2014
Código do texto: T4770211
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