Assim não dá
 
"Enfim, enfim quebrara-se realmente o meu invólucro, e sem limite eu era. Por não ser, eu era. Até o fim daquilo que eu não era, eu era." (Clarice Lispector)
     

Eu voltava exausta do trabalho.
     
Olhava, pela janela do metrô lotado, as cenas passando como os slides que o diretor apresenta nas reuniões. “Minha vida”, pensei, “minha vida é uma eterna apresentação de slides. Uma rotina que, de tão indigesta, me causou uma gastrite.”
     
Como se não bastasse a TPM e a bronca desnecessária do meu chefe naquela tarde, eu não havia encontrado um assento disponível no vagão e tive que ficar em pé. O estômago queimando e uma cólica infernal me obrigaram a equilibrar-me para procurar os remédios na bolsa. Foi quando senti o volume encostando em minhas nádegas.
     
Desisti do antiácido e do Buscopan e tentei adivinhar o que seria aquilo. Era cilíndrico e duro. Pelo reflexo no vidro, vislumbrei o homem que estava atrás de mim. Alto, pálido, cabelo pretíssimo milimetricamente fixado, terno, uma gravata listrada. Ele quase me abraçava; as mãos, por fora, ao lado das minhas. As pernas abertas ficavam num vai-e-vem exagerado, aproveitando o sutil movimento do trem.
     
Resolvi colaborar com ele. Adiantei um passo despercebido ao seu encontro. Ainda não tinha certeza, mas a seda da minha saia me permitia ter uma ideia do desenho do que me roçava: era realmente comprido, roliço e aumentava de tamanho em uma das extremidades.
     
Mas chega um momento na vida da gente em que não dá.  E eu, uma mulher medíocre, uma calma e obediente secretária bilíngue, fui tomada por essa sensação limite, justamente no momento em que a máquina entrava no túnel. O metrô mergulhava no breu gemendo no atrito dos trilhos. Meu útero vazava bloqueios, meu refluxo transbordava recalques.
     
Aproveitei a escuridão e, fingindo uma alergia, segurei-me firmemente com a mão direita no apoio do teto e deslizei a esquerda pelas costas. Com o polegar, me coçava o cóccix, enquanto o mínimo e o anelar exploravam os botões da camisa dele, como se meus dedos pulassem pedras num rio. Enfim encontrei o cinto, certamente de couro. Um ladrão de carteiras não teria a minha peripécia e habilidade. Enfiei a mão rapidamente na aresta da calça e peguei com firmeza aquela coisa volumosa e consistente. Os olhos do ousado se esbugalharam e eu percebi a mudança repentina na pele dele, de um cálido a um frio metálico.
     
Enfiei o dedo no buraco e segurei firmemente a coisa sem dar-lhe chance para uma reação. Meus dedos travaram envoltos como uma ratoeira.


Era realmente o que eu pensava: uma arma.

Tirei-a subitamente e girei o tronco num equilíbrio de bailarina.

O tiro foi certeiro.

No meio da testa.
Well Coelho
Enviado por Well Coelho em 11/04/2014
Reeditado em 11/04/2014
Código do texto: T4765417
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