Uma história sem título
Eu voltava para casa, chutando pedras na rua e pegando um caminho mais longo do que o de costume.
O fato era. Eu não queria voltar para casa.
Devia ser umas cinco da manhã e já tinham passarinhos cantando nas árvores e pessoas saindo para o trabalho.
Parei numa praça, onde um mendigo sentado no chão me chamou de longe. Ele tinha uns olhos azulados e incrivelmente tristes. Me perguntou se eu tinha um cigarro. Eu não tinha.
Então ele tentou me vender um mapa da Iugoslávia, que arrancara de alguma enciclopédia. Por Deus, a Iugoslávia nem existia mais como país.
Dei-lhe uma nota de cinco reais e deixei que ficasse com o mapa.
Retomei o caminho, pensando em coisas obsoletas,
como aquele papel.
Logo cheguei ao prédio onde eu vivia.
O porteiro cochilava, ouvindo as primeiras notícias do dia num rádio velho.
Subi as escadas e em cada andar que eu alcançava, podia ouvir o barulho das pessoas dentro de seus apartamentos.
A prostituta atendendo seu último cliente,
um marido espancando a esposa,
uma senhora asmática agarrada ao nebulizador vendo um pastor gritar na televisão.
Clichês da vida que ninguém vê, que a televisão não mostra,
que ninguém quer saber.
Continuei subindo até a porta do meu apartamento.
Enfiei a chave na fechadura, pensando se devia entrar ou voltar para a rua.
Não havia outro lugar para ir, portanto entrei.
Tirei os sapatos e larguei pelo meio da casa.
O gato veio até mim, miando com fome. Deixei a porta entreaberta para que ele pudesse ir para a rua caçar alguma coisa.
Fui ao banheiro e encarei o espelho e a pia amarelada. Lavei meu rosto e as lentes dos meus óculos. Não consegui não perceber a marca de batom ainda gravada no espelho, mas fingi que não estava lá.
Me joguei no sofá e tentei dormir. A luz do sol me irritava a vista ao ponto que me dava dor de cabeça.
Virei de costas, enrolei um pano no rosto e fechei os olhos.
Não ia voltar àquele quarto.
Àquele maldito quarto.
Acordei já depois do meio dia.
Podia ver dois pés gordos diante de mim quando abri os olhos.
Era a senhora asmática do andar de baixo, com uma vassoura na mão.
- Pois não? - Eu disse, limpando o rosto.
- Seu maldito gato entrou de novo em minha casa. Da próxima vez jogo-lhe água quente. Já lhe disse que tenho alergias. Devias manter esse animal preso. - Me respondeu, com um tom que misturava raiva e cansaço.
Me pus sentado e antes que eu pudesse falar algo a senhora já havia deixado a espelunca que eu chamava de casa.
Eu morava num antigo prédio comercial, que com o tempo fora convertido num residencial para pessoas de baixo poder aquisitivo. Pobres diabos, como eu.
O apartamento tinha uma grande sala, que foi dividida em duas, para se fazer um quarto. Não tinha cozinha. Apenas um banheiro apertado.
Vivia escondido ali.
Para mim era como um exílio auto-infligido. Naquele lugar, ninguém fazia questão de me visitar e era exatamente isso que eu buscava. Completa solidão e contemplação da miséria. A minha própria e a miséria alheia.
Atualmente a única pessoa que vinha me ver era uma mulher que vivia no apartamento acima do meu.
Eu não sabia exatamente o motivo pelo qual ela se interessava em mim. Mas não era infrequente que me trouxesse comida e me oferecesse seus cuidados quando eu adoecia.
Transávamos sempre, mas nunca na minha casa. Fazia questão que fosse na dela. Na cama dela.
Para mim era ótimo. Podia ir embora a hora que eu quisesse e não corria o risco dela prolongar a sua estadia mais do que me fosse agradável.
Ela nunca reclamou de nada. Nunca perguntou de minha vida pessoal. A única coisa que fazia questão era ler meus textos antes de qualquer outra pessoa.
Para mim, aquilo tudo era um bom negócio.
Ela se chamava Élida. Tinha em torno dos 35 anos de idade. Pelo que eu tinha percebido, era viúva.
Vivia de pensão e pintava como hobbie. Eu tinha visto algumas de suas telas e me agradei de uma ou outra.
Pensei em bater-lhe na porta. Mas não queria impor minha presença num domingo a tarde. Talvez estivesse recebendo visitas.
Depois de algum tempo imaginando o que fazer e sem chegar a conclusão alguma, me levantei e procurei algo na geladeira.
Retirei de dentro um longneck de cerveja e um empadão de carne que Élida tinha me trazido no dia anterior.
Um almoço muito melhor do que eu já tivera em alguns dias.
Sentei na mesa e comi. Ao fim, encarei céu azul pela janela.
Por que o céu tinha que ser tão azul em domingos como aquele?
Era como se Deus ostentasse a beleza de sua criação em minha cara para ressaltar a minha própria feiúra e a feiúra do mundo em que eu vivia.
Limpei a boca e puxei para perto o computador.
“Quando eu te perdi,
antes mesmo que de ter provado,
aquele teu gosto de vinho e cigarro.
Eu quis quebrar o mundo em pequenos pedaços.
Quis borrar o céu e zombar do conceito de eternidade.
Eternidade que eu tanto quis,
depois que você deixou aquela marca em mim,
como uma marca de batom na primeira página de um livro.
Hoje eu quero rasgar a mim mesmo,
talvez buscando deixar de existir.
ou morrer em silêncio,
em seis minutos ou menos.”
Deixei os versos escritos na tela por um tempo.
Então imprimi e colei na parede como uma lembrança.
Uma hora, Élida iria descer e lê-los.
Ia pensar provavelmente em quem teria sido a mulher que me inspirara aquilo tudo.
Talvez tivesse ciúme por não me inspirar nada semelhante.
E então me jogaria em sua cama tentando se imaginar como a mulher daqueles versos.
Tentando deixar alguma marca.
Às vezes tenho pena dela. Mesmo sabendo que eu deveria ter pena de mim mesmo.
Matei a cerveja e me deitei no sofá.
Dormiria até que algo interessante viesse me acordar,
dessa vida, ou desse sonho sem sentido.