Homens e cães
A panela de ferro chiava sobre a chapa incandescente do fogão a lenha. Seus passos faziam a casa toda gemer e reclamar. O chão era de madeira, tábuas desdobradas de um grande e regular pinheiro há mais de dez anos. Mulher! Disse ele, a nossa quirera já está boa de comer? Preciso ir até a casa do Piérce, logo depois da comida, vamos atrás dos bandos de Jacus no matagal do Neves, o Piérce já pediu permissão pra caçarmos lá fazem duas semanas e ele mandou o Tiquinho ir cevando as aves lá no mato antes de irmos. Onde está minha cartucheira de couro de capivara, disse pra si mesmo, não esperando resposta, pois sabia que ela estava dependurada no chifre de boi no paiol. O pezinho de porco estava muito bom, deixa um gosto forte na comida, pensou.
Há uns cinco quilômetros ali daquele rancho, Piérce e seu filho Tiquinho aguardavam o nego Jair pra poderem embrenhar-se no matagal. Piérce era um homem muito severo, sistemático e um tanto inflexível com as pessoas. Pois uma vez ele vendeu uma porca criadeira com sete leitões para um vizinho por trinta cargueiros de milho. O homem levou o milho e descarregou tudo solto num monte no chão do paiol. Piérce arrumou um cesto para calcular a exatidão dos cargueiros e pediu para Tiquinho o ajudar, eles chegaram a contar quase trinta cargueiros se não fossem por apenas algumas espigas que faltavam pra fechar a conta. Coisa pouca, qualquer um iria apenas ignorar o fato, mas ele não. Trato é trato! E não é senão de espiga em espiga que se faz um cargueiro, dizia ao filho. Foi até a casa do vizinho cobrar as espigas restantes.
Sempre dizia ao filho, para um homem que se dominou até fome já é gula. Tiquinho era apenas um menino inocente e mirradinho que poucas vezes fora pra cidade. Tiquinho saiu e foi ajeitar os cachorros que eram práticos e seriam muito úteis lá no mato. Ele estava ansioso, pois nunca havia saído caçar de verdade com gente grande, com seu pai, de espingarda trinta e dois e tudo. No máximo tinha armado algumas arapucas pelos matos e derrubado outros tantos sanhaços dos pés de caqui com seu estilingue.
Venha cá! Brasil, vem! Vem! Co-co-co! Assobiava, estalava os beiços, então o cão apareceu, saiu debaixo de um forno de barro que a mãe de Tiquinho usava pra assar pão, bolo de fubá e até leitão. O cachorro se chamava Brasil por causa da cor meio brasina, manchada e difusa. Era um cão razoavelmente grande, tinha medo de outros cães, embora não abaixasse o rabo pra qualquer um, mas no mato ele era uma fera, tinha uma corrida meio desengonçada, não era muito bom pra alcançar os bichos, contrapunha esses defeitos com um acuado forte, escandaloso e esganiçado e quando chegava a alcançar o bicho pegava mesmo, mordia e não soltava, fosse tatu, fosse porco-espinho. Quantas vezes Tiquinho não teve trabalho com ele ao ter que retirar espinho por espinho do focinho, das patas, das orelhas. É um trabalho delicado, dói muito para o cão, tem que tomar cuidado pra não levar nenhuma mordida e também não deixar tocos de espinho na carne do animal e se não for tirado depressa o cão corre o risco de ficar entrevado, paralisado e até morrer, pois os espinhos vão se afundando na carne como se estivessem vivos.
Isso Brasil, vem aqui, vamos atrás de jacuzada hoje, você vai gostar. O cachorro latiu, olhou para Tiquinho e piscou os olhos, já sem pelos em volta, que formavam um pequeno óculos de coro depilado, de tanto sair correr bicho por esses matos e banhados afora. Muita surra de espinho e guascaço de folhas e galhos. Agora vamos atrás do Marelinho. Marelinho, um cachorro pequeno e magro, diziam que era da raça Nacional misturado com Barbudo, tinha unha perdida, um ótimo cão de caça, era o cachorro mais esperto, era rápido na corrida, não tinha buraco onde ele não entrasse, tinha ganidos diferentes para diferentes tipos de bicho do mato e para diferentes lugares em que esses pudessem estar, se era trepado em alguma árvore ele gania de um jeito, se tinha entrado num buraco era de outro, se estava na corrida ainda outro tipo de ganido e se estava parado, encurralando um Quati era outro. Quando Tiquinho tocava um berrante velho, que ali nem se usava mais, era só pra bonito, o cãozinho cantava também, ele chorava e uivava com tanto sentimento que dava até vontade de chorar.
Brasil e Marelinho estou muito ansioso! Hoje será minha primeira caçada como um homem de verdade. Não sei aonde ir de tanta alegria, e vocês estão felizes? Os cães pulavam nele e o lambiam com intensidade. Pai! Pai! Estão aqui os marotos. Muito bem, agora venha aqui, você vai levar o bodoque e alguns cartuchos reserva caso precisemos. Pai! Posso levar uma espingarda. Não! Disse duramente Piérce.
Enquanto isso, os cachorros latiam, estava chegando lá na porteira o companheiro de caçada.
Olha, disse Piérce, o nego Jair vem chegando ai.
Boa tarde vizinho.
Boa tarde.
Como vai piá, tudo certo pra primeira caçada? Toma cuidado e não fica na mira do cano da minha trinta e dois paulista.
Vou bem seu Jair, disse Tiquinho.
Enquanto os dois mais velhos conversavam e combinavam as estratégias de caçada, tiquinho foi arrear os cavalos, pois o matagal do Neves ficava pelo menos uns sete quilômetros dali.
Pegaram então, os cães em correntes, duas espingardas uma gaúcha e uma paulista, cada homem com uma. Alguns bodoques para carregar a caça, dois facões três listras, uma foice caso fosse preciso abrir a capoeira, canivetes, duas cartucheiras pra quinze cartuchos, vinte cartuchos de plástico e dez de metal pra refazer a munição, um corote com um pouco de pinga, uma cabaça com água, um chicote de couro trançado para controlar os cães e partiram rumo ao matagal.
Chegaram no mato e soltaram os cães, açularam e os dois, Marelinho e Brasil, saíram em disparada e sumiram no meio dos cipós. Os caçadores foram até o local onde tiquinho vinha cevando as aves, por ali muitas penas pretas e excrementos dos Jacus, mas nada dos bichos, logo os cães acuaram, com os ganidos característicos de quando encontram algum bicho no mato que parece quase um choro, os Jacus grunhiram na mata, quando encontraram as aves os cães voltaram para que não voassem mais pra longe.
Com muita calma e de passos silenciosos, em alguns minutos, os caçadores aproximaram-se das negras e barulhentas aves. Tiquinho quase soltou um grito, tanta a emoção, ele dava saltos por dentro, queria é sair correndo de encontro aos Jacus. Um estampido, dois, três. Aves pelo chão e aves voando. Fizeram uma boa caçada.
O menino animado e ao mesmo tempo incomodado por não poder fazer nada, abandonou o bodoque e os cartuchos de pólvora e foi correndo apanhar as aves mortas do chão. Piérce ficou apenas observando, o menino voltou com algumas no colo e despejou na frente dos caçadores. Piérce chamou o menino pra perto, agarrou-o pelas orelhas e bateu, bateu nele com várias e fortes chicotadas nas costas.
Tiquinho chorando, sem entender o que estava acontecendo e porque tinha apanhado ainda teve a coragem pra perguntar pro pai o porquê daquilo. Piérce muito firme e calmamente respondeu:
Você apanhou porque mereceu, agiu como um cão, não como um homem. O serviço de apanhar os animais mortos é dos cães e você se precipitou a fazer o que não lhe competia, portanto, agiu como um cão apanhou como um cão. Cada um tem aquilo que merece.