O Anjo do Senhor
O Anjo do Senhor
- Entre logo, homem! – berrou ela – você vai pegar um resfriado.
Ele entrou hesitante e olhou-a como se nunca a tivesse visto. Trazia uma folha de jornal debaixo do braço. “Você leu isso aqui?”, indagou, e sem esperar pela resposta leu em voz alta:
- “Nesta segunda, moradores ainda evitavam falar com jornalistas, com medo de represálias. Segundo as agências de inteligência, uma senhora teve as pernas quebradas e uma jovem foi estuprada na frente da mãe por terem dado entrevista depois da ocupação da Maré pela Policia Militar”.
Ela deu de ombros enquanto lavava legumes na pia. “O que você esperava?”, volveu, de costas, “nascem no meio de ratazanas, os pais batem neles, se drogam e fazem sexo, tudo na frente deles, o que você queria? Que houvesse um candidato ao prêmio Nobel ali? O que você quer fazer?”.
- Cortá-los ao meio com a minha espada – bufou ele, dobrando o jornal.
- Oh, puxa, isso não me soa nada positivo – bradou ela – nada salutar, isso é arcaico. Você precisa ler a irmã Faustina.
Ele respirou fundo, bebeu água e disse: “De quem se trata?”.
Ela ainda de costas, agora cortando legumes, explicou: Faustina Kowalska, polonesa, família numerosa, pouca instrução, foi para um convento com vinte e poucos anos e viu Nosso Senhor.
- É mesmo? – admirou-se ele.
- Sim – observou ela – viu um pouco de tudo e, se não me falha a memória, em 1935 ela anotou no seu diário: “Vi um anjo que era o executor da ira de Deus”. Então ela orou e orou, sentindo que uma terrível punição seria lançada sobre parte da humanidade. Foi quando ela ouviu o Terço da Divina Misericórdia. Deus pediu que ela orasse pelo mundo.
- 1935... – murmurou ele olhando para o alto e depois brandindo o jornal – não melhoramos nada!
- Não reclame – advertiu ela – dentro de dois meses não teremos uma gota d‘água e ano que vem, parte de nós estará à luz de velas.
Ele se levantou em silêncio e tornou à varanda. O sol se punha também em silêncio. Por uma fração de segundos se viu gigante, com uma armadura no peito e asas nas costas. Em sua mão direita uma poderosa espada reluzia. Depois tudo evaporou junto com o poente, e ele se recolheu pensando que talvez, numa ínfima parcela de tempo, houvesse entendido alguma coisa.
(Imagem: "Allegory of Charity" by Francisco de Zurburan, 1655)
O Anjo do Senhor
- Entre logo, homem! – berrou ela – você vai pegar um resfriado.
Ele entrou hesitante e olhou-a como se nunca a tivesse visto. Trazia uma folha de jornal debaixo do braço. “Você leu isso aqui?”, indagou, e sem esperar pela resposta leu em voz alta:
- “Nesta segunda, moradores ainda evitavam falar com jornalistas, com medo de represálias. Segundo as agências de inteligência, uma senhora teve as pernas quebradas e uma jovem foi estuprada na frente da mãe por terem dado entrevista depois da ocupação da Maré pela Policia Militar”.
Ela deu de ombros enquanto lavava legumes na pia. “O que você esperava?”, volveu, de costas, “nascem no meio de ratazanas, os pais batem neles, se drogam e fazem sexo, tudo na frente deles, o que você queria? Que houvesse um candidato ao prêmio Nobel ali? O que você quer fazer?”.
- Cortá-los ao meio com a minha espada – bufou ele, dobrando o jornal.
- Oh, puxa, isso não me soa nada positivo – bradou ela – nada salutar, isso é arcaico. Você precisa ler a irmã Faustina.
Ele respirou fundo, bebeu água e disse: “De quem se trata?”.
Ela ainda de costas, agora cortando legumes, explicou: Faustina Kowalska, polonesa, família numerosa, pouca instrução, foi para um convento com vinte e poucos anos e viu Nosso Senhor.
- É mesmo? – admirou-se ele.
- Sim – observou ela – viu um pouco de tudo e, se não me falha a memória, em 1935 ela anotou no seu diário: “Vi um anjo que era o executor da ira de Deus”. Então ela orou e orou, sentindo que uma terrível punição seria lançada sobre parte da humanidade. Foi quando ela ouviu o Terço da Divina Misericórdia. Deus pediu que ela orasse pelo mundo.
- 1935... – murmurou ele olhando para o alto e depois brandindo o jornal – não melhoramos nada!
- Não reclame – advertiu ela – dentro de dois meses não teremos uma gota d‘água e ano que vem, parte de nós estará à luz de velas.
Ele se levantou em silêncio e tornou à varanda. O sol se punha também em silêncio. Por uma fração de segundos se viu gigante, com uma armadura no peito e asas nas costas. Em sua mão direita uma poderosa espada reluzia. Depois tudo evaporou junto com o poente, e ele se recolheu pensando que talvez, numa ínfima parcela de tempo, houvesse entendido alguma coisa.
(Imagem: "Allegory of Charity" by Francisco de Zurburan, 1655)