Um Menino Azul
Nasci azul. Um tom de azul que se misturava ao roxo e predominava nos lábios, nas mãos e pés, se acentuava nas orelhas. Diagnosticaram-me uma doença rara a que uns chamavam tetralogia de Fallot e outros garantiam ser uma pentalogia de Fallot. Seja como for, cresci assim, fraco, sem fôlego, sempre acompanhado clinicamente e condenado a morrer quando crescesse e o meu coração, cheio de defeitos, não aguentasse a sobrecarga de esforço que a adolescência, inexoravelmente, me traria. – Se da morte ele não escapa, aceita os riscos e faz operar o menino como pretende o cirurgião estrangeiro, disse a avó Cremilde quando se ponderaram os prós e os contras depois do jantar. Saí do bloco operatório quase morto mas já não vinha azul. Cresci rodeado de mil cuidados e, para que me não afogasse nos meus próprios líquidos, dormia em curtas etapas de duas horas, no máximo três. Acordava depois e ficava um tempo sentado antes de deitar-me para repetir o ciclo. Tornei-me homem. Diziam que eu era muito inteligente mas isso era só porque, como ficava muito tempo acordado sem ter com quem conversar, lia tudo o que podia, decorava tudo e, portanto, sabia muito mais que os outros. Continuava frágil e, o que era pior, inconformado com as minhas limitações físicas. Fiz-me pintor. Na minha linguagem pictórica abundam os círculos brancos e pretos, alvos de pontaria para setas ou tiros, porções desses alvos misturados com outras coisas. Pintura moderna e autêntica, dizem. Tenho sucesso e vendo tudo o que faço nas melhores Galerias do País. Sentia-me um alvo a que a vida, as circunstâncias, o amor e os outros procuravam atingir. Defendia-me usando uma informação sempre atual e superior e agredia todos: colegas, críticos, jornalistas. Temiam-me. Temem-me. Decididamente, não sou uma pessoa fácil para conviver ou suportar. A minha vida tornou-se um inferno e, cansado de me debater para existir, decidi que era tempo de acabar. Leio “ A verdade na Pintura “, de Jaques Derrida e termino o “Labirinto da Saudade”, de Eduardo Lourenço. Leio muitas coisas ao mesmo tempo e tento ocupar as minhas longas noites brancas. Sinto-me como a estrela do filme de Michael Cimino, “O Caçador” mas, paradoxalmente, é só a mim que amarro e anulo. Anunciei a minha morte para 16 de Junho de 1978 por nunca ter aprendido a recuar de diálogos extremistas, exuberantes e insólitos como aquele em que me afirmei dono do meu próprio destino. Onde eu estivesse o palco era só meu; onde eu falasse ninguém poderia vencer-me pela palavra ou pela cultura. Fui o rigor. Fui a fonte do ódio. Todos me achavam louco e, até a minha mulher, vítima primeira dos meus achaques e crises de violência, aceitava que a demência era parte do meu problema. Projetei tudo. Quando desafiei o grupo de drogados para a dialética, quando os insultei e os venci na argumentação que usei, esperava provocar-lhes uma raiva bastante para que fossem eles a acabar comigo. O dia que escolhi para isso era a data que anunciei. Ainda sinto as pancadas. Usaram paus, pedras, mãos e pés. Morderam-me. Senti a minha saliva e o sangue misturados a correr pelos espaços onde pouco antes tive os dentes. A seguir a noite avermelhou, a luz do candeeiro público desapareceu e uma certa leveza me tomou inteiro. Achei que era o fim e que um anjo me carregava, finalmente, para o silêncio e para um lugar de muita luz. Quando, depois de alguns dias acordei, vi as batas brancas e o chefe da equipa de médicos dizer que a minha vida terminaria em breve. Falhei no dia mas acertei no mês.