DE PAI PARA FILHO
Conto de Gustavo do Carmo
Junto com a mãe, Miro sofreu muito com a mania de economizar do pai, Seu Setembrino. Era um homem ranzinza, autoritário e extremamente pão-duro. Dona Agnes contou que, quando o filho era bebê, o marido a obrigava a reutilizar as fraldas descartáveis. Só permitia a troca se não tivesse mais jeito de lavar, nem de remendar os rasgos, que eram costurados com linha e agulha emprestada da vizinha porque Setembrino não deixava comprar.
Ao supermercado Dona Agnes só podia ir uma vez a cada três meses e, ainda assim, acompanhada de Seu Setembrino, que só deixava comprar uma lata de óleo de soja, um pacote de palha de aço e uma caixa de fósforo. Todos, claro, da marca mais barata. Arroz, feijão e outros produtos a granel eram comprados na mercearia da esquina de casa, ao gosto de Setembrino. Na padaria, comprava apenas quatro pães franceses de 25 gramas.
A sofrida dona-de-casa chegava a chorar, de tanta vergonha que passava na frente da caixa, da empacotadora e dos outros clientes do supermercado que a observavam piedosos. Às vezes, Dona Agnes comprava escondido.
Em casa, as luzes só podiam ser acesas quando Seu Setembrino estivesse lendo um livro ou fazendo contas, Dona Agnes costurando e Miro estudando. Todos na sala. Os outros cômodos ficavam apagados. E a luz só poderia ser usada por duas horas. O tempo era medido por um relógio na parede. Aliás, suas pilhas eram retiradas quando Setembrino saía de casa.
Televisão? Só para assistir ao telejornal regional e o nacional da noite e a novela das oito. Futebol era escutado pelo radinho de pilha. Dona Agnes tinha que fazer a janta às cinco da tarde, para aproveitar a luz do sol. O banho tinha que ser tomado em apenas cinco minutos.
A família de Miro raramente recebia visitas. Quando ocorria, Seu Setembrino não deixava servir nem uma água. Ele abria mão do presente do Dia dos Pais e não deixava Miro dar nada no Dia das Mães. Miro chegava ao ponto de furtar dinheiro na carteira do pai para dar presentes nesta data e também no Dia dos Pais.
Presentes só no Natal e bem barato, de preferência. Quando o menino ganhava um brinquedo elétrico, a pilha só era dada no mês seguinte. Os presentes eram distribuídos à tardinha porque Bino, sua esposa e o filho passavam a noite na casa do seu irmão e ainda não queria presentear nenhum convidado e nem o anfitrião. Tio Júlio, ao contrário, era bastante generoso e fazia questão de dar os melhores presentes para o sobrinho e a cunhada.
Se sua mãe passava vexame no supermercado, Miro sofria muito na escola. Os cadernos, lápis e borrachas eram contados. Livros didáticos ele só podia pegar emprestado do filho do vizinho ou ler na biblioteca do colégio. Ah, estudava no Pedro II, uma escola pública. Não tinha vídeogame porque seu pai dizia que gastava luz. Só soube o que era um quando ia jogar na casa dos poucos amiguinhos que compreendiam e não zombavam da pão-durice do pai, que já era famosa na turma.
Computador só conheceu em uma lan-house comunitária na Tijuca, bairro onde nasceu e mora até hoje. Entrou na universidade pública, aprovado facilmente no vestibular. Começou a cursar economia. Sempre foi um menino estudioso e muito inteligente, mas chegou aos dezoito anos revoltado com as humilhações que sofria do pai pão-duro. Passou a bater de frente com o velho.
Seu Setembrino jogava-lhe na cara que economizava pensando no futuro. Contava que veio de família muito pobre e passou fome quando criança. Não queria ver o filho e a esposa sofrendo como ele.
Realmente Miro nunca passou fome, e, sim, vergonha por causa da economia desnecessária e obsessiva do pai, que tinha um escritório de contabilidade. Os funcionários também sofriam com as economias de Seu Setembrino. Metade das luzes ficava apagada e no horário de verão o expediente ia até às oito da noite. Começava no horário normal. Só deixava um único computador ligado a ser dividido pelos dez funcionários, que eram proibidos de carregar o celular. E se alguém precisasse ir a um shopping deveria parar na rua pra não pagar estacionamento. Independente da economia, o escritório de Seu Setembrino dava muito lucro. A família tinha condições de viver bem sem precisar economizar.
Mas Setembrino defendia que queria ensinar o filho a poupar e não gastar com coisas supérfluas. Sem convencer com os seus argumentos, fazia chantagens, dizendo que deveria ter deixado os dois gastarem bastante e ainda explorarem o irmão rico que morreu na miséria. Aquele Tio Júlio, rico e generoso, que gastava tanto que um dia acabou indo à falência. Foi abandonado pela mulher e teve a cobertura de quatro quartos no Recreio dos Bandeirantes leiloada, mesmo depois dele se jogar da varanda (era um prédio de vinte andares) quando recebeu a notificação de despejo. Aconteceu quando Miro tinha quinze anos.
Para acalmar os ânimos das freqüentes discussões, Miro fingia que compreendia as justificativas do pai. Fazia as pazes com ele.
Saiu de casa quando a sua mãe passou muito mal e teve que enfrentar horas de espera e o deboche de um enfermeiro de um hospital público, lotado de pacientes agonizantes. Seu Setembrino havia cancelado o plano de saúde porque Dona Agnes chegara aos sessenta e cinco anos. Se Miro não tivesse puxado o pai pelo colarinho e o sacudindo violentamente, alterado, exigindo que ele pagasse uma consulta no hospital particular, Dona Agnes teria ficado com seqüelas de um derrame. Isso foi na frente de todos, inclusive a polícia, que fazia a guarda.
Por pouco, Miro não foi preso por desrespeito ao idoso. Setembrino pediu para os policiais retirarem a queixa, levou a esposa desfalecida a uma clínica sofisticada na Quinta do Boa Vista. Pagou a consulta e a internação. Por causa de tudo isso, Miro perdeu uma entrevista de estágio e culpou o pai, que sentiu na pele as humilhações que fazia passar a esposa e o filho.
Miro foi morar no alojamento da faculdade enquanto a mãe estava internada. Quando conseguiu uma vaga de faxineiro, logo promovido a atendente de balcão da padaria próxima ao campus, alugou um conjugado no Maracanã e levou a mãe para morar com ele. Miro não queria mais que a mãe sofresse nas mãos daquele louco sovina. Inconformado por ter de morar sozinho, Seu Setembrino praguejou que o filho ainda iria dar valor à avareza dele.
Um dia, entrei na lanchonete e fui atendida pelo Miro. Descobri que estudamos na mesma faculdade. Me encantei com a sua responsabilidade, honestidade e simpatia. Miro também era muito bonito. Tornei-me freguesa assídua do estabelecimento. Na verdade, só ia lá para vê-lo. Ele também parecia ter se apaixonado por mim. Modéstia à parte, sou bonita, tenho olhos verdes, cabelos castanhos claros e lisos e seios fartos.
Seis meses depois, no campus, ele me chamou para sair, mesmo não sabendo o meu nome (Darlene). Ele havia deixado de trabalhar na padaria e já estagiava em um banco em Copacabana. Mais um ano, foi efetivado e estava ganhando muito bem. Comprou até um carro. Popular, mas era um bom veículo. Depois do jantar em um restaurante na Avenida Atlântica, nos sentamos em um banco no calçadão da praia e fiquei com ele pela primeira vez. Começamos a namorar.
Miro também já havia feito as pazes com o pai e voltado a morar com ele. Seu Setembrino vendeu o escritório, aposentou-se definitivamente (já recebia uma boa pensão por ter trabalhado na Caixa Econômica) e já não implicava com os gastos na casa porque Miro passou a pagar tudo, inclusive um plano de saúde para os pais. Seu Setembrino continuava com a mania de economizar, mas somente para ele.
Miro era um homem romântico e sincero. Pena que nem tudo é perfeito. Quando completamos um ano de namoro, ele me levou a uma cantina portuguesa barata em São Cristóvão. Fiquei chateada. Achava que merecia um lugar melhor para comemorar o nosso aniversário. Guardei o aborrecimento para mim. Também nem reclamei quando ele pediu para eu pagar a conta. Disse que estava liso de dinheiro. O que tinha guardava para o nosso casamento.
Levou dois anos para marcar o casamento, de fato. Não contou detalhes porque queria fazer uma surpresa. Não gostei de ele querer me levar para morar com seus pais no mesmo apartamento velho onde foi criado. Mesmo assim, só aceitei porque eu estava apaixonada.
A minha mãe fez o vestido, realizando um sonho de infância. A pior decepção foi quando eu descobri que eu não seria a única noiva da cerimônia. Miro nos inscreveu em um casamento coletivo, organizado pela paróquia do bairro dele para as comunidades carentes. Só não fugi porque eu queria ter o prazer de dizer NÃO para o padre, na frente de cinqüenta casais e seus convidados.
Não quis me casar com um homem que, apesar de tudo o que sofreu, já era mais pão-duro do que o pai.