Flor-de-Novembro

Pequenina ainda achava-se a pessoa mais feia do mundo. Olhava-se no espelho quebrado da velha penteadeira da mãe – penteadeira que parecia ter atravessado séculos – e o que via a assustava tanto quanto uma aparição. Achava o nariz desproporcionalmente grande, o rosto torto, os olhos muito arregalados. Não se via como as outras meninas, nem como as da rua, menos como as da escola, tão lindas em suas tranças e em seus vestidos bordados. Seu cabelo de tão embaraçado, era sem jeito. Nada lhe ornava. Nada lhe ficava bem. Sua roupa, sempre uma calça comprida, quando não, um calção. A mãe fazia faxinas e ficava fora boa parte do dia; logo sobrava pouco ou nenhum tempo para cuidar da filha. Cansada de vê-la desarrumada, com os cabelos despenteados parecendo “ninho de rato”, a mãe resolveu cortá-los bem curtos, àquele modo a que chamamos de “joãozinho”. Ela tinha oito ou nove anos. Junto às mechas que caíam misturavam-se as lágrimas dos olhos premidos da pequena, enquanto suas mãozinhas inquietas percorriam pernas e joelhos e os dentes tensos mordiam os lábios.

– Que é isso, menina? Tá morreno, é? É só cabelo; cresce de novo. Agora vê se aprende a cuidá.

Viu-se no espelho. Agora, além de feia não tinha mais cabelo. A mãe lhe mandou à padaria naquela hora da tarde em que saía o pão quentinho. Os clientes eram atendidos um a um; um a um saíam satisfeitos, e Juliana por ali, perdida entre pernas e prateleiras, sem dizer uma palavra.

– Ô, muleque! O que cê vai querer? – clamava de lá o balconista.

Juliana já se impacientava de tanto esperar, mas não era capaz de reclamar.

– Ô, muleque! Ô, muleque! Você que tá aí parado!

Olhou para o cara que gritava e então percebeu que o balconista estava falando com ela.

– É você mesmo, muleque. Que cê vai querer?

Moleque!? Moleque!? Juliana ficou com a face rubra de vergonha e a mente negra dos piores xingamentos que a sua inocente cabeça conhecia. O que aquele desgraçado estava pensando? Teve vontade de quebrar o balcão de vidro e dizer para aquele idiota que ela era menina, “me – ni – na” . Quis mandá-lo para o inferno, ou pior, “para aquele lugar”. Mas ao invés disso, falou baixinho:

– Me dá cinco pãozinho.

Nasceu na escola, no dia seguinte, e escapou para a rua, para o balanço, para a praça, para a vida, o apelido que a acompanhou por toda a adolescência: Maria João. E muito embora odiasse que a chamassem assim – ela sempre repetia enfezada: “JULIANA” – nada fazia para melhorar o visual. É que com o tempo, Juliana passou a achar que até não era mau não ter tanto cabelo para se preocupar, para lavar, para pentear. Quando a mãe tentou deixar seu cabelo crescer novamente ela não o quis mais. Quando a mãe se recusou a cortar, ela mesma o fez. Continuava de calção, camiseta e pés descalços, correndo com os meninos atrás de uma bola de meia ou de uma pipa pelas ruas e becos da vizinhança. Achava melhor companhia e preferia parecer com os moleques. Talvez, de se achar tão feia tentava-se disfarçar entre os meninos. Como o disfarce fora dando certo, a menina foi nutrindo a ideia de mantê-lo. E quando as coleguinhas de escola começaram a usar maquiagens e a namorar os meninos mais velhos, Juliana tomou sua decisão: esconder-se-ia para sempre dos olhos do mundo.

Embora ocultasse de todos qualquer traço de delicadeza e feminilidade, Juliana possuía desde sempre o desejo latente de ser mãe. A ideia da maternidade a encantava. Mas achava ser impossível que algum homem sentisse atração por ela. Quando pequena, ao chegar em casa após os folguedos e as estrepolias com os meninos, agarrava as duas ou três velhas bonecas que possuía e punha-se a alimentá-las, banhá-las, vestí-las. Costurava-lhes roupas com os retalhos de pano de sua mãe. E as enfeitava. Brincos, anéis, colares e broches, maquiagens, esmaltes e batons. Para elas jurara que haveria de ser mãe e que, quando fosse, seria a melhor mãe do mundo e sua filha, a mais enfeitada dele.

Agora que crescia e seu corpo começava a despejar sobre ela uma torrente interminável de hormônios, Juliana achava-se ainda mais estranha, menos atraente. E suas colegas todas rodeadas de meninos. Especialmente Carolina. Juliana sempre estivera rodeada de meninos, mas não da mesma forma. Nenhum deles a olhava como olhavam para “Carol”. Tudo mudara, a não ser o desejo de ter sua própria filha. Mas, como? Que garoto iria se interessar por uma coisa desengonçada, esquisita como ela? Um aperto diferente invadiu seu coração, algo que ela nunca sentira antes. Era como a tristeza que sempre a acompanhara, porém mais intensa, mais dolorosa e retirava de tudo o brilho.

– Maria João! Maria João!

– JULIANA!

– Ui... Juliana... Você não quer ir lá em casa hoje?

– Pra que, Carolina?

– É que meu pai tá reformando a casa e vai precisar de um servente de pedreiro.

Os risos e chacotas há muito se tornaram insuportáveis. Já era hora de deixar Carolina e aquilo tudo para trás. Largou a escola e arrumou um emprego. A mãe não reclamou muito. Nem sabia como lidar com a filha. Ademais, uma ajuda financeira seria muito útil. O primeiro trabalho foi como auxiliar de uma costureira. Não deu muito certo. Juliana até levava jeito com os tecidos, mas não com as pessoas. E a costureira, mulher muito vaidosa, pôs-se a querer mudar as roupas andróginas de Juliana. Era como se ela ouvisse atrás de si a voz de Carolina, decretando: Maria João.

Depois arrumou trabalho como entregadora de jornal. Assim como os meninos, fazia as entregas ainda no começo da manhã, o que lhe dava tempo para alguma outra ocupação. Havia um lava - rápido num posto próximo, de modo que conseguiu uma colocação para o período vespertino. Era muito esforçada. Porém, passado pouco tempo, o lava - rápido fechou e ela não conseguiu outra vaga. Com bastante tempo livre, começou a permanecer no escritório do jornal. Após as entregas, quando todos os meninos iam embora, Juliana ficava ajudando aqui e ali, organizando pilhas de papel, varrendo o chão, enfim, fazendo qualquer coisa necessária, mesmo sem ganhar nada para isso. Preferia ficar ali e sentir-se útil a ficar sozinha em casa, remoendo suas feiura e esquisitice. O dono do jornal, que era também o editor-chefe, o fotógrafo, o repórter e assim por diante, acabou por ficar sensibilizado com o esforço da guria, além de que, é claro, precisava de toda a ajuda possível. Assim, contratou-a como “office-girl”. Também auxiliava o arte-finalista que fazia a diagramação. Enfim, após entregar a sua quota de jornais, continuava a fazer um pouco de tudo, mas agora recebia um salário para isso. Ainda que pouco, era útil.

Pela primeira vez, parecia que a vida tomava um rumo bom. O patrão até cogitava lhe pagar um curso de especialização. Desde que voltasse a estudar. Ela não gostou nada da ideia; ficou a cozinhar o chefe em banho-maria e continuou seu trabalho. Absorta nele, Juliana quase apagara de seu coração a dor excruciante de não ter mais a esperança de ser mãe. Quase. Tudo ia razoavelmente bem, até que...

Assim, sem mais nem menos, a secretária começou a reclamar de Juliana. Dizia que ela não parecia uma moça e que sua imagem não condizia com a do jornal. Talvez se ela mudasse suas roupas...

Juliana não suportou muito. Olhava para a secretária e via Carolina apontando-lhe o dedo: – Maria João. Logo perdeu o interesse pelo trabalho e um dia não apareceu mais, nem mesmo para receber seu último salário. O chefe chegou a ir à sua casa pedir que ela voltasse. Qual nada! Juliana era também de gênio forte. Irredutível, recusou-se terminantemente. O assunto do vestuário era tema por demais delicado para ela. Soube-se mais tarde que a secretária saía com o chefe. De algum modo, sentiu-se ameaçada pela garota de cabelos curtos que se vestia como homem.

O tempo seguiu seu curso e passou. Juliana também passou, por vários empregos, em nenhum permanecendo por muito tempo. Por onde fosse, sentia que todos faziam eco à voz de Carol, condenando-a ao perpétuo posto de Maria João. Então fugia. Como se sua alma inquieta lhe impedisse fixar raízes. Só o que não passou foi a melancolia de seu coração. Juliana tornou-se mulher, embora não se parecesse com uma. As roupas não mudaram, exceto que agora suas camisetas eram pretas e as calças rasgadas. Passou a ouvir heavy metal, da vertente mais depressiva, obscura. Creio que a designação correta seja gótico. Alguns dizem que chegou a experimentar drogas. Era o fundo do poço.

Por fim, empregou-se em uma floricultura. Destoando do colorido das flores, aquela criatura apática, sempre de preto, sem brilho nos olhos, percorria os canteiros da loja cuidando de plantas e flores e atendendo clientes. Era contraditório vê-la ali, corpo estranho à toda aquela beleza quintessente. Não era muito o trabalho na floricultura, o que lhe dava a oportunidade de meditar, longe da fria escuridão de seu quarto. Após o trato diário das plantas, Juliana passava a se ocupar do balcão, o que consistia basicamente em esperar pelo cliente. Enquanto esperava, Juliana pensava em sua vida. Às vezes punha-se a acariciar a pétala de uma rosa, de uma orquídea, para sentir a suavidade de sua textura, “a textura da beleza”, como dizia ela. Desejava ser perfeita como uma delas. Invejava-lhes a capacidade de se reproduzir sem necessidade de contato direto com outra. Não parecia justo que um ser irracional possuísse tudo e gente como ela, nada. Juliana sonhava em ser flor, e ser polinizada por um beija-flor ou mesmo por um inseto qualquer que a fizesse mãe. E sua filha seria a flor mais linda.

Pensou em inseminação artificial, em criar sua filha, assim como a mãe, sem a necessidade do estorvo de um pai bêbado, que a deixaria pela primeira vagabunda mais bonita que ela. Mas lembrou-se do sofrimento e das privações por que ela e a mãe passaram. Muitas vezes atendia a namorados ou pretendentes a, apaixonadíssimos, que compravam dúzias de flores para suas amadas, junto com aqueles tolos cartões de amor, absurdamente melosos. Será que todo homem era mesmo igual? Será que ainda existia a possibilidade de ela encontrar este tipo amor? Talvez, se ela mudasse as roupas...

Além da injustiça de possuírem todas as vantagens que ela desejava, havia algo mais que a incomodava nas flores: a efemeridade de sua beleza. Hoje eram as criaturas mais lindas que Deus pôs sobre a superfície desta terra; amanhã definhadas, murchavam e morriam. Valeria a pena o direito divinamente concedido de possuir a mais sublime beleza se o preço a se pagar era ter tão breve vida?

Submersa em suas questões existenciais, Juliana – quem diria? – começou a escrever poesia. E novamente, após muitos anos, viu-se um pouco de luz em seus olhos. Jogou fora seus discos; comprou novos, de melhor gosto. Aos poucos, passou a perceber que vivia agora em um mundo diferente – um mundo que estava envolto em e irradiava beleza. Um dia esqueceu um de seus poemas sob o livro-caixa. A proprietária da floricultura o achou, leu-o e encantou-se a tal ponto, que o imprimiu e afixou na loja. Juliana ficou encabulada ao extremo, apesar de todos os elogios. Pensou em fazer como das outras vezes: sumir e nunca mais voltar ali. Entretanto, ao chegar em casa algo diferente aconteceu.

A mãe já tinha novos móveis, mas por algum motivo, como se tivesse que ser assim, ela foi até a velha penteadeira, que jazia esquecida e empoeirada no quarto das tranqueiras. Pegou um trapo que achou e tirou o pó da superfície. Juliana, pela primeira vez na vida, olhou-se no espelho. Olhou-se de verdade, para si e para dentro de si, não aquela costumaz olhadela rápida, apenas para ver se não estava com remela nos olhos ou sujeira no nariz. Não. Esta vez olhou-se por inteiro, como se buscasse do lado de fora algo que combinasse com o seu novo estado de espírito. Viu-se como uma daquelas flores, que pareciam mortas. Não sei exatamente o que mais ela viu. Mas Juliana fez as pazes com o espelho.

– Mãe! Você pode me ajudar?

A mãe entrou no velho quarto e não conseguiu acreditar no que via. Juliana ali, parada, em frente ao espelho, tinha sobre o corpo um corte de tecido. Abraçou-a chorando, meio de lado, para a olhar também ao espelho:

– É claro, minha fia...

Costuraram até tarde daquela noite de novembro. No outro dia, ninguém reconheceu a moça da floricultura. A dona quase teve um piripaque. Os clientes habituais perguntavam por Juliana, se tinha faltado, se estava bem de saúde. Mas ela estava ali, deslumbrante! Um belo e florido vestido recobria um lindo corpo feminino, delicado e curvilíneo como não se imaginava capaz de existir por detrás das vestes desengonçadas da Juliana do dia anterior. A dona do corpo era uma bela moça de cabelos curtos, que usava brincos e, pasmem, maquiagem! Juliana decidira não mais se esconder. Nunca mais usou roupas andróginas. E nunca mais deixou de usar vestidos floridos.

Passou-se pouco mais de uma semana. Juliana estava cuidando de alguns lírios em promoção quando ouviu atrás de si uma voz familiar:

– Maria João?

Voltou-se para olhar, sem conseguir distinguir se a voz era real ou algum eco dos traumas de sua vida. Viu um casal muito bem vestido parado, meio boquiaberto, fitando-a. A moça alta, altíssima sobre um salto alto, blusa de oncinha, calça bege clara, bolsa importada combinando com o sapato, de silhueta esguia, braços repletos de pulseiras brilhantes, grandes e redondos óculos escuros e um longo e impecável cabelo louro, delicadamente preso num rabo de cavalo. Ao seu lado, um rapaz também louro, com cabelos nem curtos, nem longos, vestido apenas de jeans e camiseta branca. Notou logo que era roupa de grife. Também notou que era o cara mais bonito que já conhecera na vida. Diante da visão imponente daquele casal, Juliana mais uma vez calou-se.

– É... me desculpe. Júlia, não é? – inquiriu a madame.

– Juliana... – respondeu baixinho.

– Juliana! Desculpe novamente... Cê tá me reconhecendo?

Claro que sim. Não a princípio, tomada pela surpresa, mas agora... Era Carolina, a menina insuportável da escola. Assentiu com a cabeça.

– Acho que lhe devo mais que simples desculpas, não é? Eu pegava muito pesado com você na escola, por causa de suas roupas. Mas olha pra você agora: está linda. Você se lembra do meu irmão caçula, o Otto?

Não. Aliás nem se lembrava que aquela mala tinha irmão. Negou também com a cabeça e talvez tenha balbuciado uma resposta.

– Mas eu me lembro de você – interrompeu Otto. Sempre achei que você tinha um rosto lindo.

Só então caiu sua ficha: ele era irmão da megera, não marido! E se lembrava dela! E a achava bonita! Era informação demais... Estavam dando uma recepção para comemorar uma pós-graduação qualquer. Compraram um caminhão de flores. No caixa, Carol quis convidá-la para a festa. Convidá-la não, intimá-la. Fazia questão que ela fosse. Mas, nem morta ela iria à festa daquela a quem odiara por toda a vida e que lhe causara tanto mal. Só que Otto a balançou:

– Vou ficar muito feliz se você for.

Então prometeu pensar. Pensou. E foi. Ao entrar pela porta, Otto abriu um sorriso, pulou incontinenti do sofá onde estava e caminhou até ela. Tocou em seu rosto e beijou-lhe a face direita:

– Você está realmente linda.

Era tudo o que Juliana sonhara ouvir. Os céus se abriram para ela. Casaram-se pouco depois. Toda a família foi contra o casamento do jovem doutor com a “semianalfabeta”, à exceção de Carol. Ela ficou ao lado deles e apoiou-os em tudo. Foi até madrinha de Juliana. Talvez tenha sido remorso.

Depois viajaram, alugaram apartamento, fizeram compras. Por ele, Juliana terminou o colégio. Por ele, deixou o cabelo crescer. Mas nunca deixou de trabalhar na floricultura. No final do primeiro ano do segundo grau ficou grávida. Finalmente realizara o doce sonho da maternidade! Ser mãe era ainda mais do que esperava. Retornou às aulas após dois anos, e assim que o fez, ficou grávida pela segunda vez. Desta vez, entretanto a gravidez foi complicada, e ela interrompeu novamente os estudos. Enquanto permanecia de repouso teve tempo para organizar seus poemas num livro.

Embora o marido insistisse que ela retornasse à escola e depois iniciasse uma faculdade, Juliana queria tentar uma nova gravidez. Otto discordava, por temor de perder a esposa. Mas a sobrepujante vontade de Juliana, que sobrevivera toda a sua vida, foi de novo mais forte.

Já estava grávida por uns quatro meses quando descobriu um absurdo tumor no ovário. Tinha então vinte e nove anos. Morreu dois meses depois, e a menina em seu ventre também. Foram enterradas juntas, ambas de vestido florido, cercadas das mais lindas e tristes flores do mundo.

Juliana encontrou quem a polinizasse e não foi nenhum inseto. Foi um atraente beija-flor. Falando dela agora, penso em Juliana como uma de suas flores de vida breve, talvez uma complexa orquídea. Ou melhor, uma flor-de-novembro. Permaneceu escondida, como se morta, por quase toda a vida. Abriu-se em um novembro, desabrochou, saiu de seu esconderijo, foi feliz, amou, tornou-se mãe, tudo em ligeiro instante, tudo muito intenso e fulgurante. Depois tornou a não ser, a ocultar-se do mundo. Otto e suas crianças choraram muito. Depois, ele publicou seu livro, comprou uma casa e plantou um jardim, cheios de flores coloridas. Todos os dias, ele e as crianças cuidam delas. E ainda choram.

Quis o destino que Juliana não tivesse uma filha. Ela teve apenas dois filhos. Mas eram os meninos mais lindos do mundo.

JM della Rosa
Enviado por JM della Rosa em 04/04/2014
Código do texto: T4756602
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