Liberdade
Tão raro, tão raro. Três ou quatro horas para estar completamente só, fazer o que lhe desse vontade, ir aonde bem lhe entendesse. Pouco tempo para ir para à Toscana, muito para fazer as unhas. O que então?
Andou sem rumo, saia e cabelos esvoaçando, e já se sentia bem com o sol queimando seus ombros. Chegou à estação do metrô ainda sem saber ao certo onde desceria. Cogitou ir até o fim da linha e apenas ficar prestando atenção nos passageiros, pensou em ir a um parque, em comer um cachorro quente numa barraca longe do seu bairro. Na verdade não interessava aonde iria, o que lhe importava era essa sensação rara de desapego, de liberdade...
Liberdade! Era esse o destino. O bairro japonês, que a fazia imaginar que estava longe do seu país, onde os letreiros exibem caracteres incompreensíveis e muitas pessoas falam línguas que ela desconhece. Havia ali um templo budista, onde poderia sentar-se e meditar. E o melhor de tudo, pessoas que ela não conhecia, uma multidão na qual ela poderia se misturar sem ter que demonstrar afeto ou satisfazer vontades.
Entrou em lojas, fuçou barracas, comeu camarão, tirou fotos. Passeou num decadente jardim japonês, onde algumas carpas davam o tom solene. Caminhou até o templo, sentou-se e se calou internamente, olhos abertos, fixos na parede ornada em vermelho e dourado. Um cheiro estranho de umidade e incenso. Um silêncio entrecortado ao longe pelos carros que passavam; algumas vezes rápidos trechos de inadequados funks em seus rádios no último volume a traziam de volta à sua cidade.
Já era quase hora de voltar do passeio com sua melhor companhia; ‘a única que me acompanhará até a morte’, pensou. Pegou o metrô e chegou a sentir uma certa melancolia por ter que voltar à casa, às pessoas que a conheciam, que dependiam dela, que cobravam dela, que a pressionavam. Sentiu pena de ter que voltar para as pessoas que amava, saudade às avessas; bem que o amor podia muito bem ser só um sentimento, sem vínculos, obrigações ou satisfações a dar. Sem cuidados, sem escolhas. Principalmente sem escolhas.
Ao começar a enxergar o horizonte após a escada rolante, viu a chuva que caía; viu as pessoas entupindo a saída, esperando o aguaceiro acalmar. Não poderia ser melhor. Ela sorriu e continuou, decidida, como precisasse dessa cena de filme romântico para dar ao seu passeio solitário um final inusitado. Era forte e fria a chuva e eram engraçadas as expressões das pessoas encolhidas em marquises e pontos de ônibus, estranhando aquela mulher caminhando devagar na calçada, parando para tirar as sandálias como se isso fosse a única coisa a se fazer debaixo daquela água toda. Com o calçado na mão, continuou seu caminho lentamente, enquanto os que foram pegos de surpresa corriam até o abrigo mais próximo. Um motorista de táxi buzinou, fez sinal de que estava livre, se ela quisesse... ela acenou que não e apontou um carro estacionado à frente, indicando ser dela. Parou ao lado da porta e fingiu buscar uma chave na bolsa. Quando teve certeza de que o taxista solícito havia ido embora, continuou seu caminho.
Chegou à casa descalça, ensopada, leve e com uma felicidade discreta, quase fugaz. Estava novamente pronta para os deveres, as respostas, as tantas pessoas que dependiam dela, direta ou indiretamente. Nos olhos, um brilho sutilmente diferente, uma sensação de alegria marota, típica de quem come uma guloseima com vontade - mas, principalmente, às escondidas.