A garota que amava Beatles

Lembro-me tão bem daquele tempo. Quando eu era apenas um garoto vivendo seu primeiro amor.

Eu tinha 16 anos, acabara de fugir de casa. Andava numa tarde de sol na interestadual. Dez pratas no bolso e uma mochila nas costas, vez ou outra passava um carro, mas nenhum disposto a me dar carona – exceto por alguns caminhoneiros de aparência um tanto duvidosa.

Foi quando ouvi alguns acordes de uma guitarra que avistei um Impala 67, estacionado logo abaixo de uma árvore na encruzilhada.

Aproximei-me, e então eu a vi.

Ela apoiava suas longas pernas no volante, calçava botas surradas, calça jeans rasgada nos joelhos e uma jaqueta de couro marrom. Dedilhava sua Gibson despreocupadamente enquanto fumava um cigarro.

Aquela figura me deixou hipnotizado. Ela parecia misteriosa, intrigante e perigosa...

“Ora, ora. O que temos aqui? Um garotinho da cidade que fugiu de casa porque o pai queria que fosse advogado?”

Ela sorria irônica.

“Não, meu pai queria que eu fosse medico.”

Ela me ofereceu carona e fomos em direção à cidade vizinha. Eu sabia desde aquele momento que aquela mulher, que ela seria inesquecível.

“Eu sou John, e você?”

“Pode me chamar de Zero.”

Zero... No inicio achei que fosse apenas uma piada, talvez ela apenas não quisesse dizer seu nome a um estranho – embora eu não entenda com alguém teria medo de um estranho magrelo como eu.

“Por que Zero?”

Perguntei em tom de piada. Mas sua resposta foi acompanhada de um sorriso melancólico.

“Por que é isso que sou. O que todos nós somos. Nada.”

O clima foi subitamente quebrado com o som do rádio. Cross Road Blues.

Paramos em uma cidadezinha beira de estrada. Havia um bar que fazia o adjetivo “espelunca” parecer carinhoso. E completamente lotada.

Zero trocou algumas palavras com o barman e voltou com uma garrafa.

Uísque.

“Nada melhor do que uma Jack Daniel’s”

Após bebericar o conteúdo da garrafa – que ficou sobre minha responsabilidade – ela pegou sua guitarra e subiu no palco.

“E ai galera?! Eu sou Jude!”

Jude?

Zero era incrível no palco, de algum jeito mexia com todos os que a escutavam.

Naquela hora, percebi que seguir “Zero” seria a melhor coisa que ei iria fazer na minha vida.

E realmente foi.

Subimos no Impala e seguimos viagem por ai, passando de cidade em cidade. Vez ou outra Zero tocava em algum bar para ganhar uns trocados. Não havia nenhum objetivo. Não estávamos indo a lugar algum.

Mas meu destino nunca pareceu tão certo...

Era engraçado observar e aprender as coisas sobre aquela garota.

Por exemplo, sempre que se apresentava em um bar, ela tinha um nome diferente.

Jude, Lucy, Michelle , Penny, Prudence, Julia, Anna, Yoko, Sadie, Rita, Carol, Bonnie, Maggie, Martha, Lizzy, Minnie, Caroline, Georgia, Mary Jane, Kate, Sally, Ruby.

Com o tempo me dei conta que esses nomes vinham das canções dos Beatles.

Ela também tinha a incrível habilidade de arrumar briga no bar, e sempre tínhamos que fugir pelos fundos.

Quando estava bêbada demais, Zero parecia uma adolescente de 15 anos, e quando estava sóbria demais falava como quem já viveu uma vida toda.

Ela adorava os mercadinhos de beira de estrada, ela dizia que tinha algo de atraente neles. Quando saia de um desses “encantadores mercadinhos” estava acompanhada de uma garrafa de Uísque, um maço de cigarros Black Stones – Era difícil compreender como Zero podia gostar tanto do sabor forte daqueles cigarros que mais pareciam tabaco puro – e uma barra de chocolate, fora outras porcarias alheias.

Até hoje não posso evitar sorrir ao lembrar a sua engraçada mania de me chamar de “Robin” ou “Menino Prodígio”, encontrei a explicação para tal hábito em seu porta-malas. Este estava carregado de quadrinhos de super-heróis, seu favorito era o Batman.

Embaixo do banco Zero escondia sua coleção de clássicos do rock, em vinil ou fita.

Já ouvi várias histórias sobre seu Black Impala 67. Sempre uma versão diferente da outra.

Certa vez me disse que havia roubado de uma loja de carros usados. Outra, ela havia encontrado o carro abandonado e quebrado no meio da estrada – Zero era uma ótima mecânica. A última que ouvi foi que Zero gostou tanto do carro que matou o motorista e roubou o carro.

Havia também as noites de fogueira. Quando parávamos na estrada e montávamos um acampamento.

Zero acendia um cigarro e contava histórias sobre os assassinos em série que a fascinavam.

“Ei Robin, Já ouviu falar do Médico Torturador, H.H. Holmes?”

Zero nunca escrevia as músicas que compunha, ela dizia que se sua música fosse tocada mais de uma vez, ela deixaria de ser especial.

Botas surradas, jeans rasgada, jaqueta de couro, Gibson nas costas e um Black Stones na boca. Olhos da cor do verão, castanhos animados como uma tempestade de areia. Seus pulsos eram tatuados. Em um ela tinha apenas o digito “0” e no outro havia uma frase.

“Je ne regrette rien”. Não me arrependo de nada.

Eu sempre me perguntava “Quem é esta mulher?”, isso é algo que ela nunca me revelou. Evitava falar de si mesma. Parecia querer esconder quem realmente era.

Suas músicas falavam da dor, do abandono, do sofrimento. Será que estes eram seus verdadeiros sentimentos?

Zero dedilhava algo em sua guitarra. Do lado de fora do motel, caia uma tempestade. Havíamos pegado um quartinho barato e tivemos que dividir já que tínhamos pouco dinheiro – A culpa é de certa garota que encontrou uma edição especial de Star Wars.

“Menino-prodígio, quer aprender a tocar?”

Às vezes penso que deveria ter recusado sua oferta, assim eu poderia ter me controlado... Talvez tivéssemos viajado juntos por mais tempo...

Suas mãos sobre as minhas, guiando os movimentos nas cordas da guitarra. Nossos corpos estavam muito próximos. Seus lábios sussurravam uma canção sobre a tempestade.

Agora é tarde.

Deixamo-nos levar por um beijo cálido, e depois nos entregamos à noite.

“Robin, siga meu conselho, nunca se apaixone.”

Perdoe-me Zero, mas esse foi seu pior conselho.

Abri os olhos e ela não estava lá. Havia apenas um incomodo vazia ao meu lado. As coisas de Zero também haviam sumido.

Desesperado corri para fora – Ironicamente fazia uma linda manhã de sol – o Impala não estava no estacionamento.

Só depois de voltar para o quarto percebi que havia um bilhete, acompanhado de cinquenta dólares, em cima do criado-mudo.

“Não desperdice sua vida comigo.”

Zero havia me abandonado. Sentia-me como uma criança perdida.

Eu a procurei por mais de um mês, mas nenhum sinal dela. Como poderia encontra-la? Eu não sabia nada a seu respeito, além de sua paixão pelos Beatles, Jack Daniel’s e Black Stones.

Então eu desisti. Fiquei mais algum tempo na estrada, mas vi que não havia motivos para continuar.

Voltei para casa, estudei, me tornei o médico que meu pai sempre quis. Até conheci uma jovem mulher simplória, comum e amável – com quem me casei e tive um filho.

Uma vida bem sucedida. O sonho de todos.

E eu só queria conseguir ficar sem pensar em Zero um único dia que fosse.

Às vezes podia jurar ter ouvido sua voz sussurrando meu apelido, ou sentia aquele cheiro forte e único dos seus cigarros misturados com chocolate.

10 anos. 10 longos anos. Até eu receber uma carta.

Era um envelope pequeno e branco. Era visível o carimbo “Remetente Falecido”.

A carta havia sido enviada de Nova Orleans, por alguém chamado Eleanor Rigby. Eu sabia que a carta era de Zero.

Zero havia falecido.

Contive algumas lágrimas.

Logo criei expectativas sobre o envelope. Esperava descobrir tudo, seu passado ou ao menos o motivo de ter desaparecido do motel naquele dia.

Mas não havia nada disso. Apenas um cartão postal de uma encruzilha, a chave de um carro – provavelmente um Impala preto de 1967 – e um bilhete.

“Você foi a pessoa mais incrível que conheci."

Eu te amo.

P.s. Cuide do meu bebê!

Eu devia sentir raiva, magoa qualquer coisa. Mas por algum motivo pedi a minha secretária que cancelasse todos os compromissos do dia. Eu iria para Nova Orleans.

Fui de bar em bar perguntando por tal de Eleanor Rigby, no quinto ou sexto o barman disse que ela havia deixado o carro e que um amigo viria buscar. Parece que ela estava doente e iria se internar...

O bom e velho Impala. Zero nunca me deixou dirigir e agora praticamente me dava o carro. Tal pensamento me fez sorrir.

Qual foi a minha surpresa ao perceber uma Jack Daniel’s e um maço de Black Stones no banco traseiro, junto a uma guitarra Gibson vermelha.

Droga, Zero...

Uma ou duas horas se passaram, fiquei apenas ali observando aquelas coisas tão familiar e chorando baixinho. Zero realmente sabia fazer eu me sentir como uma criança.

Já estava deixando a cidade quando passei por um cemitério, talvez ela estivesse ali...

Peguei o Uísque e os cigarros.

Perguntei ao coveiro se sabia de alguma Eleanor Rigby enterrada recentemente. Fiquei surpreso ao obter uma resposta afirmativa.

Ele me levou ao túmulo dela. Curiosamente havia apenas a data de seu falecimento.

Sentei diante da lápide e acendi um cigarro. Logo senti o gosto forte típico dos Black Stones.

- Sério, como você podia gostar disso?

Fiquei um tempo encarando o nome na lápide fria. Eleanor Rigby.

“Eleanor Rigby died in the church and was buried along with her name.

Nobody came.”

Ri sem realmente achar graça, agora entendo porque ela escolheu logo esse nome.

- Zero... Eleanor Rigby não combina com você.

Peguei uma pedra ali por perto e risquei o nome na lapide. Logo abaixo escrevi “Zero”.

Uma lágrima solitária escorreu.

- Agente se vê, Zero.

Amanda Nunhofer
Enviado por Amanda Nunhofer em 28/03/2014
Reeditado em 25/12/2014
Código do texto: T4747542
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