Duas voltas na Roda da Fortuna

Ela andou dias e noites por caminhos escuros ou largos, semeados, lisos, ribanceiras, lajedos, areal - e por todos que nem conhecia foi: perguntando, pouco respirando ou sabendo, colhendo só mormaço, fruta passada, névoa fria, alvoradas tão sós que nem detinham o sol...

O tempo se esgotava, e nada. Até que conseguiu pista: o que procurava estaria numa das infinitas cavernas daquela cordilheira, bem no alto mais alto, face escarpada, pouco hospitaleira, ventania certa. 'Pedras rudes e vento forte: bom sinal'...

Foi.

Na xésima porta de pedra e terra condensada, escondida sabiamente por arbustos secos, ouviu cicios e vislumbrou tremeluzências. 'Será aqui!'. E adentrou, o medo de antes e do depois balançando joelhos e dentes - ou tremendo só de cansaço puro.

As criaturas lá estavam, ao redor de si e do tear. Uma fiava, outra aprumava o fio para a tecitura e a última o cortaria, chegada a hora.

As voltas do eixo de fiar posicionavam cada vida na parte alta, privilegiada pela sorte, ou em sua parte menos desejável, no fundo; o fio por quem viera estava esticado, esperando tesoura, enquanto uma peça de tecido bordado se estendia inacabada, desmerecida de cores e contornos finais; o corte daria tom e limite, daí, a urgência.

As criaturas eram medonhas e sinistras - e o sabiam - mas detinham poder sobre os destinos, e a ela importava somente isso.

'Peço por uma vida', falou, antes que a surpresa de ser notada ativasse nas damas a atitude de romper seu próprio - e extenuado - cordão.

Por um instante, três faces inundadas de grandes dentes se ergueram perplexas, para girarem os ouvidos em busca da tal voz invasora e premente.

A viajante se curvou: 'Eu vos saúdo, domadoras de homens e deuses! Para estar aqui roubei e menti, passei fome, nem dormi; caminhei tanto, mas não demais, pois cheguei; minha mente crê em meu corpo e presença apenas porque sinto a viscosidade e o cheiro do sangue que escapa dos pés e das mãos. Mas nada disso tem valor perto do meu pedido - sequer minha vida tem valor se atenderdes meu pedido!, então peço por este fio: deixai-o inteiro, para que se complete o tecido!'

As irmãs, eternas e terrenas, piscaram os cegos olhos por mais esta surpresa, mas feminina e tipicamente confabularam: Átropos não queria ter retida de si seu direito de terminação, e à hora em que decidisse - e já decidira!; Láquesis se disse entediada de tanto puxar e enrolar e sortear justo para aquele fio, sabendo da pouca valia que para ele havia nos mistérios - ora, ele sequer confiava em qualquer sonho!, e isto podia ser visto na pobreza de imagens da peça quase descartada. Cloto, porém, contemporizou - afinal, fiara por nove luas, e vê-lo cortado causava-lhe dó - e ganhou mais rodadas para aquela vida, convencendo as outras a sugerir acordo de troca, especialmente após verificarem a tecitura da que pedia.

'O que nos dá em retorno por essa demanda injusta, pois que a ela não possuis direito?'

'Já o disse: meu próprio fio.'

'Não tens medo?'

'Tenho amor.'

'Isso já sabíamos.'

'Então...'

'Basta-nos tua memória: em troca, esquecerás tudo - inclusive nós todas, o acordo e o caminho.'

'Não posso negociar a memória dele?'

'Tu estás aqui, ele nada quer. E escolhe rapidamente, que o eixo não para de rodar'

'Que seja!'

Determinantes do curso das vidas, as mãos das damas tinham dedos que terminavam em longuíssimas e curvas unhas; fez-se silêncio e ela admirou-se como eram efetivas suas finas atividades, e se não atrapalhar-se-iam de vez em quando...

(...)

Ela andava dias e noites pelo mesmo caminho, poupando tempo entre casa, trabalho e lazer; vez por outra cruzava com um homem que a cumprimentava, mas que tinha certeza de não conhecer. Certo dia, numa esquina cheia de sol, ele a abordou: 'O que aconteceu contigo?!'

O toque e a voz dele evocaram gosto de amanhecer solitário e uvas azedas; por rápido momento lhe veio o pensar em deserto antes e próximo de um monte muito alto, com cor e jeito de pedra. Sentiu-se tonta, 'Larga-me!', respirando pouco agora, sabendo menos ainda, dor nos pés e nas mãos, e muito, muito frio, correu.

Atravessou a rua cegamente; o caminhão tentou parar.

Numa caverna outra vida estava ao alcance de lâminas eficazes, manuseadas por mãos cujas extremidades pareciam impossível o uso lúcido e o corte exato.

'Como ela sabia que não deveria implorar?', questionava Átropos, desde tempos antes. Láquesis lembrou: 'Sabemos o tecido que ela fazia do próprio fio. E sou eu quem vive a puxar e puxar a fibra e sentir se é seda forte ou imitação...' 'Ora, a culpa não é minha!', saltou Cloto, continuando: 'É a vida e a roda que escolhem o material... Mas, de fato, qualquer pessoa imploraria; ela ama e talvez isso seja a diferença.'

O vento era forte e sibilava; o caminhão tentou parar.

A pancada na cabeça, o susto e uns arranhões tornaram-se mais nítidos que as lembranças, já fugidias. Ele a socorreu ao hospital, onde foi diagnosticada uma leve concussão, que a obrigava a ter companhia em casa por, ao menos, quarenta e oito horas, sob pena de ser internada em observação. Ele se propôs - tinha curso de primeiros socorros e cuidador, desde que quase morrera daquela doença infeliz -, o médico aceitou e ela se viu conduzida amorosamente pelo quase estranho. 'Foi por um fio!', estremeceu-se ele.

O eixo do caminhão parou de rodar a tempo, a roda de fiar continua.

Gina Girão
Enviado por Gina Girão em 26/03/2014
Reeditado em 22/12/2015
Código do texto: T4744715
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