O Maço de Cigarros

Chorar adiantaria?Talvez,mas não posso, agora não.Chorar na frente de todos seria como pegar um alto-falante e gritar por aí minhas dores, e isso seria exibicionismo.Não quero a pena de ninguém, e o conforto meia volta é meia boca, ou falso, o pior tipo de conforto, o falso.Não estamos na sessão do museu; "dores do Rodolfo".Minhas dores não estão em exposição, e nunca estarão.O museu é meu.Se eles quiserem ver uma história triste que vão assistir uma peça de drama, ora! O ator principal na minha está em greve, pois o roteirista não consegue escrever mais nada que preste, e isso porque sua musa inspiradora fugiu, desapareceu.O poeta precisa de uma musa assim como o céu escuro precisa de uma lua, para lhe iluminar a alma(e eu não quero que a minha musa seja a solidão!não mesmo!).A minha musa era de porcelana e se quebrou,a minha lua escorregou no céu fino como se estivesse evaporando,e eu não consegui segurá-la...

-Rodolfo deve estar muito ocupado com seus pensamentos, não é?-a voz rouca interrompeu-me

-O que?Ah, nem te vi chegar

Laura nem imaginava que não eram pensamentos, eram dores.Ela se sentou ao meu lado na escada da biblioteca e disparou:

-No que tanto pensa?

-No pó das escadas e você?-ela haveria de estar pensando em algo, nem que fosse em como alguém pode pensar no pó das escadas

-Em como alguém pode pensar no pó das escadas-ela respondeu.Hoje na aula tu tava meio quieto, que que aconteceu?

Será que estava tão na cara o que havia acontecido?Ou melhor, o que não havia acontecido.Eu perdi todas as linhas da minha página e agora ela está em branco.Como irei escrever?Comecei a suar:

-Não, não ocorreu nada, só quis ficar na minha

-Ninguém para na frente de uma biblioteca pra ficar pensando no pó das escadas se não aconteceu nada.Aposto que nem era nisso que você estava pensando.Anda, fala

Se desviar de Laura era como tentar se desviar de uma metralhadora a todo vapor; não dava.Ainda bem que aquele dia eu estava usando um colete contra balas, e de súbito me lembrei, olhando o celular, que tinha que ir a casa de minha vó:

-Laura-eu disse já me levantando-são quase uma hora e eu preciso ir, mais tarde a gente se fala

Pulei dois degraus e suas bilhões de partículas de pó e saí em disparada, ouvi a loira gritar ao fundo:

-Há pesquisar que indicam que o câncer é causado e desenvolvido após a guarda de muito rancor de alguém!Se você não liberar quaisquer coisa que incomode tua alma Rodolfo, você vai desenvolve-lo no peito!O câncer da alma!Rodolfo, desse jeito você vai explodir!

Eu sou uma bomba Laura, eu sei.Mas quem não é?

Quase perdi o ônibus das 13:30, porém consegui pegar o número 45 que levava ao bairro dos Laranjais.Fui vomitado do retângulo metálico com outras três pessoas, um senhor já de idade com olheiras que aparentavam dor, uma moça com carrinho de feira, vazio, e uma estudante.Cada qual com suas dores.Em ordem(da esquerda para a direita):o menino e seu quase-amor, a dona de casa com problemas financeiros e que voltará novamente para casa com pouco sustento, o senhor que perdeu os netos e hoje vive totalmente isolado, e a estudante carregada com a pressão de ser o futuro da nação.O mundo não dá folga pra ninguém.

Peguei a chave na mochila e abri a porta da casa número 342, uma casa de esquina rosada, sem nenhuma rosa no jardim. Sem bater nem anda, empurrei a porta, de imediato ouvi a voz:

-João?!

-Não vó, sou eu, Rodolfo

-Ah sim!O João saiu para comprar um maço de cigarros e não voltou até agora, o safado!

Entrei direto na sala de estar, uma TV velha á direita, com um sofá á sua frente, e o pó acumulado nas janelas e em alguns porta retratos. O pó acumulado nas memórias, mesmo que essas nunca sejam esquecidas. Senti o peito desfiar, aquela maldita dor havia me acompanhado.Ela podia ter se perdido no mar de faces que é o Rio, mas não, essa dor era original, não havia como não reconhecer.

Avancei pelo corredor, dando uma olhada nos pequenos momentos do passado emoldurados na parede.Nenhum quadro, apenas fotos.Nenhuma arte, apenas partes, daqueles que já partiram.Em um deles a foto de casamento de minha vó, Taísa, e meu avô, João.Ela vestia um vestido cheio de rendas, e sorria, sorria como se a felicidade fosse passageira e fosse apenas lhe escapar, nunca lhe acontecer.Ela não estava de toda errada.Meu avô estava com a postura dura,como qualquer outro bom ex-militar deveria ter, mas o coração era mole, sorria de lado, como se quisesse eternizar o momento nos dentes.Não era preciso, ele já estava eternizado antes mesmo de acontecer.Também não era preciso ter ido comprar o maço de cigarros, não era...Mas a solidão é teimosa:

-Rodolfo!Aprece o passo menino, preciso da tua ajuda

Prossegui e cheguei ao quarto no fim do corredor, vô Taísa estava numa cadeira perto da janela, a TV ligada, mostrando dores fictícias.Mas a minha era real.Eu queria ser eternizado junto á ela numa moldura, eu queria...

-Não é gozado?

Minha vó disse, apontando para a própria cadeira:

-Eu vou pra esse lado, e PUF, sobe desse outro.Acho que uma perna é menor que a outra

Rasguei um pedaço de jornal, que estava em cima da cama,fiz uma bolinha com ele, e o coloquei embaixo de uma das pernas da cadeira

-Obrigado, agora sim!-disse ela

Notei que em um de seus chinelos havia um remendo de panos enrolados:

-Pra que serve isso?-perguntei, apontando para o adereço

-Para equilibrar.Pro chinelo, que tá meio solto, não bater no pé, sabe como é né?Eu to velha e meu pé acabado

Eu sou jovem e meu coração também tá acabado. Seria bom se tivesse um desses pro meu peito também, a dor tá solta aqui dentro e tá batendo forte:

-Coloca a mochila na cama moleque

Fiz o que ela pediu e me sentei, Taísa me observou por uns instantes, e então falou:

-Quer que eu faça um pro seu peito também?

Eu explodi.As neuroses atingiram o teto.As paranoias jorravam aos montes no chão e na cama, cor rosa.A solidão foi parar no branco da parede, onde se camuflou, as palavras nunca ditas voaram pela janela e foram á procura de um novo gravador ambulante, que nunca apertaria o "play" para essas serem ditas.Meu coração, agora, mas se parecia com uma obra de arte abstrata.Já as lágrimas, essas acertaram em cheio o ombro da vó Taísa, enquanto ela dizia:

-Tá tudo bem Rodolfo, tá tudo bem...

E chorava junto.Chorava pelo marido e pela filha mortos em um assalto.Chorava pelo neto despedaçado inteiro por um quase amor.Chorava pela maldade no coração das pessoas. Taísa chorava, e chorava, tudo o que jamais chorou

Então o vento soprou, a porta se abriu, e Taísa perguntou:

-João?