Aquilo Que Os Olhos Não Veem

Ela sai do banho toda perfumada, veste-se maravilhosamente. O perfume dela penetra como ácido em meu nariz... Ah, a dor que só ela me faz sentir... Aquele vestido preto que me cega, que machuca minha visão. Ela me olha e diz um “oi” tão suave que parece estourar meus tímpanos. Eu não consigo responder. Ela sorri. E aquele sorriso dilacera meu coração.

Sem reação, abaixo a cabeça, mas ela se aproxima. Ela me toca. Sinto como se a lava mais quente do mais furioso vulcão me queimasse. Puxo meu braço de volta e vejo queimaduras na minha pele. Dói. Arde. Ela pergunta se eu estou bem. Eu não estou, mas não posso admitir. Eu finjo um sorriso e ela se afasta. Finalmente consigo respirar. Enquanto observo minha pele derretendo, ouço meu nome. Ela pede para que eu a acompanhe. Meu sangue flui como água fervente em minhas veias.

Ao andar ao lado dela, minhas pernas pesam como concreto. Trôpego, caminho em direção ao desconhecido acompanhado dela. Ela percebe que não estou me sentindo muito bem. E resolve colocar o braço dela por trás do meu pescoço. Tudo que eu não queria. Uma cruz de pecados e medos sobre minhas costas, já deveras açoitadas pelo tempo. Não aguento e caio. Não consigo respirar. Ela insiste em perguntar como eu estou me sentindo e eu não respondo. Olho pra cima e vejo a mão dela estendida em minha direção, pra me ajudar a levantar. A mesma mão que me empurrou de um abismo no qual eu caio até hoje. Eu me recuso a aceitar ajuda. Ajoelhado, ouço ela dizer que estou estranho. Como se houvesse algo pra demonstrar o contrário.

Levanto-me, lenta e dolorosamente. Esquivo-me do braço dela, prefiro apenas acompanhá-la, sem ser tocado. Ela dá de ombros e continua caminhando. Vou seguindo atrás, mantendo uma distância segura: já quase não aguento tudo que estou sentindo. Meu braço ainda queima, eu mal enxergo e mal escuto. Mal posso continuar a andar. E não quero demonstrar fraqueza, embora isso seja impossível nesse momento. Eu estou fraco. Meu coração está fraco. Minha vida está fraca.

Após andar mais um pouco, eu paro. Não aguento. O peso, a dor, tudo isto, é mais forte do que eu. Forte demais pra mim. Ou sou fraco demais para o mundo. Para ela. Para tudo. Ela se vira e vem até mim. De cabeça baixa, não consigo me desvencilhar do abraço dela... Agora, aprisionado em correntes enormes e pesadas, mal posso erguer meus braços. Com a respiração ofegante, quase sem ar, tento pedir para que ela se afaste, mas em vão. Já não vejo mais nada, já não ouço mais nada... Apenas sinto o leve toque daqueles lábios no meu rosto, me envenenando e, enfim, me dando o que eu sempre precisei: um meio de deixar tudo pra trás.

Perante os pés dela, caio, moribundo. Eu não sabia onde estávamos, mas sabia que já não importava mais. O fim era iminente e eu estava me libertando de todos os demônios que haviam dentro de mim. E fora também. Tento agradecê-la, mas não consigo emitir som algum. Então aproveito a escuridão e deixo minha existência. Ela ainda tenta me erguer, mas tudo que faz é marcar ainda mais minha pele com queimaduras.

No dia seguinte, encontram meu corpo. Testemunhas disseram que me viram perambulando sozinho pela rua. Os legistas disseram que tive um mal súbito e não havia ninguém pra me salvar. Meu corpo estava intacto, sem machucados, sem escoriações, a não ser um pequeno corte na testa, decorrente da queda.

Eles estavam errados. Não conseguiam perceber todos os machucados ao longo do meu corpo. Não viam as feridas, as cicatrizes. Não puderam sequer notar a cruz enorme que eu carregava nas costas. Melhor pra eles. Quanto menos souberem sobre mim, menos vão sofrer pensando no quanto eu sofri. A dor existe, embora nem sempre possa ser notada por olhos desatentos. Nem mesmo os mais atentos olhos às vezes conseguem enxergar o quanto isso machuca. Algo que me entristece profundamente é saber que, embora ninguém nunca tenha visto o quanto sofri, ninguém, também, jamais viu quem era a minha companhia naquela noite. E ela está por aí, à espera de mais alguém pra fazer sofrer perante seus olhos e escondido dos olhos do mundo. Cuidado. Ela vai ser o seu fim. Tal qual foi o meu.

Edimar Silva
Enviado por Edimar Silva em 16/03/2014
Código do texto: T4731431
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