Ela era igual a mim...
Aprendi a ver em seus seios as madeixas dos cabelos pretos de mamãe, sua pele rósea e seus carinhos adocicados e mansos. Eu queria apenas afagá-los, sentindo o perfume do sabonete que mamãe usava; mas ela não estava em minhas lembranças e por isso o que me saía da memória era invisível a ela que, sem saber de minhas lembranças inocentes, apenas me excitava doidamente, pedindo-me o que eu não desejava àquela hora, o que pouco me visitava à vontade, sem com isso sentir - me menos homem ou menos macho! Regava uma discussão dentro de mim mesmo: não me fazer ouvido pelos alheios ouvidos, os dela!
Feria-me ao feri-la com minha desvontade, o que seu coração pedia tanto e o meu disfarce teatralizava o resto dos nossos entreolhares. Não poderia ser mais à sua frente o filho de mamãe que havia se casado. Minha mãe estava morta. Deveria apenas venerá-la como um amuleto de minhas boas lembranças. E foi assim que o meu casamento foi se diluindo, destronando, virando brisa lenta sem chegança de aviso. Era como se fosse ele um vulcão cansado após vomitar seu último grama de lava.
Casamos em julho, mês de inverno vivíssimo, chuva choradora e fria, tempo de agasalhar-se. Ela era tímida. Lancei-me, no começo de tudo, sobre seus olhos, mostrando as mais densas fantasias que a vida havia me ensinado. Ela me acompanhava desconfiada, mas prazerosa ao encontro do estranhamento que lhe causavam as coisas novas. Aconteceram-nos descobertas bonitas. Achamos todos os sabores do outro lado do casamento onde apenas os audazes chegam. Lugar que, para se frequentar, exige-se coragem - uma coragem irmã do pecado! acho que a traumatizei também. Das trevas levei-a ao extremo da luminosidade de minha libido. Não permitíamos que qualquer obstáculo impedisse as nossas viagens serenadas, após as madrugadas de brilho e furor, que atravessávamos saborosamente. Houve momentos, logo no comecinho de tudo, que, enquanto eu provava de deliciosas gargalhadas, ela se escondia para chorar.
Eu acreditava piamente que o casamento nos conferia um prumo direcional tal que jamais nos permitiria destrilhar; que haveria um sentido e uma direção indesviável. Foi pensando assim, e por isso, que agigantei minhas pegadas caminho afora, levando-a comigo, é claro, nunca ânsia louca de tudo provar e provar e provar. Nossa revolução era intraduzível fora de nós dois. A vida era um frevo ligeiro: nós, enquanto Pierrot e Colombina, íamos às missas dominicais com as mãos nos olhos e os pés nos ouvidos. Tudo o que ouvíamos nos era proibitivo. De nossas reflexões saltavam brasas enormes. A certa altura de nossa viagem, não sabíamos qual de nós carregava maior culpa. O sexo estava cronificado em nós de forma absolutamente crítica. Nossas vidas eram redemoinhos de prazer. Fora isso nada víamos.
Um telefonema mudou tudo!
- Quem quer falar com ela?
- Kiara!
Deixei que as duas conversassem a sós. Fui banhar-me. Combinaram o que desejavam fazer. Eram amigas virtuais, mas sabiam de tudo uma da outra. Falavam-se há anos. Eu desconhecia o teor de suas conversas.
Combinaram e eu fui junto. Ela foi dirigindo o carro. Atravessamos a cidade toda. Era cedo ainda, antes das nove da noite. Apanhamos uma estrada esquisita e adentramos noutra que era polvilhada por motéis.
- Para onde estamos indo nós três?
Ela sorriu e acenou-me com a mão direita, pedindo que eu me tranquilizasse. Tinha a certeza de que dormiríamos juntos – Swing à vista! Parou o carro na garagem do motel. Ela desceu primeiro, puxando pela mão a amiga - que amiga! E eu, propositalmente, me demorei. Não sabia ao certo como comportar-me diante do inusitado. Achei de culpar-me por tanto caminho avançado ao lado dela. Havia lhe ensinado tantas coisas obscenas! Agora era tarde demais para me lamentar.
O que vi? Subi os apertados degraus da escada da garagem. No meio da escada ouvi que tocavam uma música romântica e uma luz negra estava acesa. Não era engano meu, havia ouvido uma quarta voz dentro do quarto. Fiquei ainda mais curioso. Ultrapassei a porta e arregalei bem os olhos para tudo ver logo!
Para não cair, sentei-me na mesinha da ante-sala. Logo pude ver que Kiara estava sob o lençol e por cima de alguém que não era a sua amiga que havia vindo conosco. Não arranjei coragem para ir até a cama redonda onde estava ela e o desconhecido. Àquelas alturas tudo era possível.
Divorciamos oito meses depois. Ela me convidou a fazer uma pequena viagem de despedida. Aceitei! Nessa viagem soube tudo dela.
- Pensavas que eu era tímida, santa..., que nada! Quando vi você trair-me com Izabel, aquela empregada novinha que cuidava tão bem de suas roupas, lembra-se?
Eu só pude sorrir. Meu casamento era uma carta falsa de um baralho velho e imprestável e eu nem notei. Pobre de mim!
- Todas às vezes que você viajava para passar mais de três dias fora, eu preparava uma pequenina surpresa para mim mesma. Achava que também merecia!
- Sempre com aquele indivíduo?
- Não..., aquele estava ali pela primeva vez. Eram outros, sempre outros. Não costumava repeti-los para não me viciar em um! Era perigoso.
Hoje aprendi que toda semente que cai no chão pode germinar. Não se tem a certeza de quantas e quais delas o farão. Kiara germinou e transformou-se em árvore frondosa, imensa e possui fruto doce, o que me foi pior! Eu me amarguei em meu próprio engano. A vida nunca mais me fora igual à de antes. Aprendi a lição mais feroz que a vida pode ensinar a alguém: plantamos o que, apesar de tão pequenino - a semente - pode transformar-se em uma árvore enorme. Os desejos residiam no chão da floresta densa. A realização deles pode levar-nos até ao envenenamento. Toda mulher para mim chama-se Kiara e eu sou a maior Kiara entre todas elas. Reaprendi a viver. Destruo toda a floresta que apenas pense em germinar dentro de minha alma. Não é por medo, mas por desamor. As estradas da libido parecem pequeninas diante dos meus passos. O pior é que sou conservador às claras e modestamente moderno às escuras. Não se pode ser assim...