O Major

Era jovem, oficial do Exército, e estava doente no Hospital Militar. Já tinha experimentado as delícias de quarto de General com casa de banho privativa e serviço de primeira qualidade mas, quando um general se baleou na cabeça, tive de deixar o quarto que só habitara por falta de vagas na altura em que me internaram. Mudei, portanto, para uma Enfermaria de três camas destinada a oficiais que eram sempre velhos e morriam rápido. Dizia-se que aquela Enfermaria matava que nem dundum, um conhecido repelente de mosquitos. Era verdade. Em dez meses de internamento pude conhecer, consequentemente, dezenas de companheiros. Fiquei amigo de muitos mas fiquei mais ligado ao Major Rui Terêncio. Quando chegou ainda falava embora suprimindo palavras nas frases ou pronunciando-as de modo imperceptivel. Implicou comigo por achar que eu, como alferes, não poderia passar em frente da sua cama, para ir ao lavabo, sem lhe pedir autorização. Foi difícil fazê-lo entender que, ali, só eramos doentes e, ainda, que ele teria tudo a ganhar com a minha amizade uma vez que eu poderia ajudá-lo ou não. Para ele perceber melhor, assim que pediu, levei-lhe a arrastadeira que a enfermeira tardava em trazer evitando-lhe o desconforto de ter defecar na cama como já acontecera quando éramos superior e subalterno. Fiz o mesmo com o urinol, evitei que a comida arrefecesse dando-lha na boca assim que chegava e muitas outras pequenas coisas. Quando se repetiu o AVC, ele manteve-se lúcido mas perdeu a capacidade de falar. Nessa altura já éramos amigos. Só de o olhar eu sabia o que ele precisava, queria, ou preferia. Lia-lhe as notícias, abria, fechava ou deixava entreaberta a porta, corria os estores da janela ou abria-os se ele queria mais luz, chamava a enfermeira ou o médico de serviço e, enfim, vivia muito para cuidar dele. As visitas que tinha limitavam-se à esposa e à filha, ambas antipáticas e pretensiosas. Elas detestavam-no. Comecei a aperceber-me que faziam tudo o que ele não queria, ignoravam os pedidos que, espremendo-se, ele fazia e divertiam-se vendo-o congestionado pela raiva e pela impotência. Tentei ser intérprete mas elas fingiam não perceber ou alheavam-se ostensivamente quando as avisava que não era aberta que ele queria a porta e que estava a recusar a comida que insistiam em o forçar a engolir. Um verdadeiro inferno. Um dia decidi enfrentar a esposa e ela acedeu, finalmente, a justificar-se. Casara com ele muito cedo por vontade do pai, também ele militar. Terêncio era, ao tempo, Pupilo do Exército na fase final do curso. Déspota, rigoroso, inflexível e sádico no dizer dela, Rui Terêncio foi um marido distante, um pai ausente, uma figura a quem todos temiam. Se ela mudasse o lugar de um vaso de plantas ou afastasse um palmo o relógio existente sobre o aparador, nascia uma discussão absurda recheada de agressões verbais e murros nos móveis. Fora assim a vida toda, disse muito irritada. Quando lhe deu a primeira trombose ele ficava as noites inteiras a claudicar com a bengala fazendo a recuperação no corredor. Ninguém dormia e o toc toc da bengala no soalho era insuportável, contou-me. Pouco depois repetiu-se o acidente vascular cerebral e foi então que ela e a filha se livraram dele. A vingança era uma necessidade de ambas agora que achavam que o poderiam fazer com impunidade por saberem já que ele não recuperaria. Por que o não deixara? Apenas por não saber fazer nada que pudesse dar-lhe autonomia financeira. E…era tudo. Compreendia que eu o estimasse mas ela iria manter-se contra o marido. Infelizmente não teve muito mais tempo. No dia seguinte, amparando-o para lhe verticalizar a cabeça a fim de o alimentar, o Major olhou-me longamente e, sem que eu saiba como, disse : - bom alferes. E morreu.

Fim

Edgardo Xavier
Enviado por Edgardo Xavier em 03/03/2014
Reeditado em 03/03/2014
Código do texto: T4713815
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