Folia zero
“Só pode estar louco”, concluiu um dos rapazes do grupo que observava, paralisado e estarrecido, o aviso no mural. “Quem ele pensa que é? O prefeito?”, indignava-se outro jabupiranguense, falando mais alto. E continuou: “ele não tem autoridade para fazer esta proibição! É um velho amargurado! Perdeu a mulher, não arrumou outra e só porque não tem mais alegria, não quer que ninguém mais tenha!”. A cada discurso revoltado o grupo em frente o mercado ia ficando maior.
O mural era uma das principais fontes de informação para os pouco mais de 2000 moradores. Achados e perdidos, anúncios de venda e compra e vagas para 'bicos' (“porque 'emprego' mesmo, só nas vizinhas maiores”, resmungava a juventude). Colavam até as notas de falecimento. Nem a Internet é tão dinâmica e eficiente quanto o mural do mercado de Jabupiranga!
E o comunicado emitido e assinado por doutor Agenor, o delegado, causou um rebuliço: “anunciamos que o carnaval foi CANCELADO. Pessoas que vivem na área 'sem carnaval' estão isentas da obrigação de comprar abadás, cornetas e caipirinha até o dia 05 de março próximo, devido ao preocupante aumento da violência nesta época nos últimos dois anos”.
Duas amigas de vinte e poucos anos soluçavam inconsolavelmente após lerem a mensagem. Jamais conseguiriam imaginar o que seria da cidade sem o carnaval que, devido aos longos anos de tradição, atraía turistas de várias localidades e se tornara uma festa até mais frequentada que as quermesses em louvor ao santo padroeiro da cidade.
“Esse cara precisa é escutar umas verdades!”, vociferou Nicolau, dono de boteco, calculando o prejuízo ao mesmo tempo em que lia o texto. “Vai lá na casa dele então, Nico”, pediu tio Lino, setenta e três anos nas costas, todos eles passados ignorando aqueles quatro dias de festa mais meio de ressaca ou descanso. “Eu não!”, respondeu Nicolau, esquivando-se com um movimento de recuo, como se escapando de uma bofetada. “Não sou louco igual ele. Se vou lá sozinho, ele me prende!”. Tirou do bolso a garrafinha de ipioca e bebeu um gole, percebendo em seguida que todos fitavam-no. Depois do padre, do pastor, do coronel, do delegado e do prefeito (exatamente nesta ordem), Nicolau era a pessoa mais respeitada pelos jabupiranguenses. O padre e o pastor era capaz de concordarem com o delegado. O coronel e o prefeito estavam fora. Por isso o grupo olhava sem piscar para o dono de boteco, vendo nele a única chance de doutor Agenor mudar de ideia. “Sozinho eu não vou. Se vocês quiserem, vamos todos juntos”.
Era fim de tarde de uma sexta-feira pesadamente nublada e os foliões, que já rezavam para que São Pedro segurasse o aguaceiro durante o carnaval, teriam que rezar também para que algum santo protetor da sanidade e do juízo os devolvesse ao delegado.
O telefone da casa de doutor Agenor tocou três vezes antes de dona Mercedes, a empregada, atender. Ele saboreava uma xícara de café recém-coado enquanto abastecia pacientemente o cachimbo com fumo. E não se atrapalhava, nem fazia sujeira, apesar de estar esparramado na cadeira de balanço, levando-a levemente para frente e para trás, com alegria.
- Doutor, é um moço do jornal no telefone. É verdade que o senhor mandou cancelar o carnaval? - perguntou, surpresa, a empregada.
- Calma, dona Mercedes. Vamos até o telefone que eu esclareço para o rapaz e a senhora já escuta - doutor Agenor tomou o último gole da xícara e dirigiu-se à mesinha do telefone – Pronto!
- Doutor, boa tarde. É Abelardo, repórter do “Jabupiranga Agora”. Está correndo um boato na cidade de que o senhor ordenou que fosse proibido o carnaval...
- Sossega, menino. Não precisa chorar, pode sambar à vontade. A mensagem no mural foi uma brincadeira e uma forma de protesto. Sempre que chega o feriado de carnaval eu perco o sossego. O barracão de eventos da cidade se transforma num inferno. As pessoas não sabem se divertir. É briga atrás de briga! E você deve se lembrar do homicídio que tivemos ano passado.
- Sim senhor, noticiamos no jornal. Então quer dizer que vamos ter carnaval este ano e o comunicado não passa de uma piada?
- Sim, pode ficar tranquilo. Agora, se você me dá licença, vou terminar o cachimbo - o delegado desligou. Dona Mercedes ria feito criança.
- Doutor, esta ideia foi ótima! O senhor é um barato!
- Obrigado, dona Mercedes. Agora, como prêmio, quero mais um cafezinho. A senhora serve, por favor?
- Claro, doutor! - antes de recolher a xícara vazia, escutaram o sino do portão, que fazia papel de campainha. A empregada foi até a janela e levou um susto - vixe, doutor! Tem um mundaréu de gente ali fora! Acho que querem falar com o senhor.
- Nossa mãe, será que estes toupeiras não entenderam a piada? - aproximou-se e viu a rua lotada a perder de vista. Mais gente do que quando tem carnaval ou folia de reis. O delegado olhou espantado para a empregada.
- O que o senhor vai fazer?
- Ué, dona Mercedes... vou lá conversar com eles.
- Mas é perigoso, doutor! E se agredirem o senhor?
- Que agredir nada! Sou o delegado da cidade, esqueceu? - disse, procurando disfarçar o medo.
- Toma cuidado, doutor...
- Pode ir tranquila pra cozinha. Vá buscar meu cafezinho – pediu o delegado, tocando de leve as costas dela.
Quando a empregada saiu, ele abriu a gaveta do armário e pôs o revólver no coldre. Antes de abrir a porta, observou novamente pela janela. Não havia gritos, nem barulho de qualquer outra espécie, exceto o do sino tocando. Aguardavam em silêncio.
Quando doutor Agenor abriu a porta, foi aplaudido por todos. Chegou a pensar que retribuíam à brincadeira com ironia. Em seguida, cantaram.
“Deus cuida de mim na sombra das suas asas
Deus cuida de mim, eu amo a sua casa
E não ando sozinho não estou sozinho,
Pois sei: Deus cuida de mim.”
O delegado abriu o portão sem nada entender e o pastor da cidade veio cumprimentá-lo. “Doutor Agenor é um homem de Deus! A proibição daquela festa é uma benção! Viva o doutor Agenor!”. A multidão respondeu alto: “viva!”. O delegado percebeu que se tratava de praticamente todo o contingente evangélico de Jabupiranga, ou seja, quase metade da cidade. “Doutor”, continuou o pastor, “o senhor já é nosso delegado, mas tinha é que ser nosso prefeito!”.
* * *
- E foi depois disso que o senhor se candidatou? - perguntou Fernandinho, afilhado do delegado, empregado recentemente como assessor.
- Sim, meu filho. E a chave para a minha vitória nas urnas foi proibir de fato o carnaval na cidade. Foi o melhor que eu podia fazer, quem gosta de excesso que vá se estrepar lá pra outras bandas! Desde então o número de ocorrências graves durante o período de feriado de carnaval é zero. Uma belezura - explicou o doutor, enquanto colocava fumo no cachimbo, agora em seu gabinete na Prefeitura, já cumprindo o mandato da reeleição, sete anos após o mal-entendido.