Pequena

Estou embargado. Meu coração. Minha literatura pobre. Minha força humana. Parte de mim corrói-se em circunspecção. Parte de mim rumo a lugar nenhum.

Vi, em uma data perdida que o tempo não ousou registrar, a pequena moça pálida sob a porta. E fiquei perturbadoramente parado. Vi uma ponta de desesperança dentro de seu olho. Mantive-me sigiloso e mudo. Por fim ela sorriu com alguma tristeza, dissimulando um amargor desusado que compartilhamos sem convicção alguma. Parti ─ isso, todavia, foi depois, muito depois.

Posso, pois, agora cerrar as pálpebras: vejo com nitidez de fotografia. Objetos dispostos em caos e capricho descuidado.

Os livros. O cheiro dos lençóis. As tintas nas paredes. Embalagens vazias pelo chão. Os signos da alma de minha pequena desenhados com fúria em cada palmo de seu remoto lar. Nada me escapa. Tudo me bombardeia. Nada se revela. Tudo se confrange. Impossível precisar em que ponto terminava o sexo e começava o símbolo: a nudez paulatina, os olhos castanhos, a palidez, o gesto, o beijo. Pausa. Respiração. Paro e olho profundamente as palmas de minhas mãos suadas. O cheiro é o meu, o suor é o meu, o tremor ébrio é o meu. Longinquamente me reconheço. Risível. Pierrô. Mas a voz dela ecoa na minha cabeça: "Temos que mudar de vida.". E meus olhos, outra vez, descansam sobre seu corpo. Minha língua atreve-se a uma bobagem qualquer, mas detém-se. Ela aproveita meu silêncio e fala de tatuagens e sonhos.

É uma mulher? Um vetor? Uma força de atração centrípeta e irremediável? Tudo fundindo a mesma alegoria barroca? Mas a moça não é barroquista, está na cama: indefesa, adorável, política. Assombrosamente livre. Pergunto-me, em vão, se algum dia já a vi assim: exatamente como vejo agora, escancarada e humana. Entretanto não atinjo sequer um esboço desse corpo que minhas mãos experimentam e protestam com a mesma burra sapiência. É o primeiro corpo dentre os corpos. É o único corpo entre as pedras. Nesse pequeno mundo, alheio e soberbo, nada é posterior. A moça paira onde não alcança meu desdém violento, aonde não chega minha sede febril.

Perdi minha fé, mas ainda resiste na carne toda a coragem em estado primitivo e puro. Estou parado diante desta porta. Pequena. Pequena. Pequena. Princesa. O tempo jaz abolido e sem possibilidade. Uma tosse ecoa melancolicamente pelas escadas.

Welliton Oliveira
Enviado por Welliton Oliveira em 20/02/2014
Código do texto: T4699060
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2014. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.