Terra, Céu, e Mar

Costa oeste da Escócia. Uma homem se senta de frente para o mar, vendo suas ondas indo e vindo, até baterem nas rochas abaixo dele. Ele estava no alto de um morro gramado, que terminava em uma falésia. Atrás dele, a elevação continuava aos poucos, mas ia se tornando mais e mais íngreme, até se unir com a grande cadeia de montanhas. O jovem Aonghus estava ali, sentado com sua harpa. Não fazia muito tempo, a havia trocado pela espada, para repelir mais um ataque dos pictos, que ameaçavam essa terra que seu povo, vindo da Irlanda, havia escolhido para viver. Agora, contudo, estavam em paz, pelo menos por enquanto. Uma trégua havia sido conseguida, e ele, junto com seu pai e outros nobres gaélicos, havia comido e bebido junto aos pictos. A despeito das histórias, eles não pareciam monstros assassinos, como era dito. Pareciam muito com seu povo, diferentes na aparência, mas semelhantes nas maneiras. Ele olhava para eles de modo estranho, como se eles tivessem algo que ele havia perdido em algum momento.E, naquele dia, ele encarava o mar, lembrando das velhas histórias sobre a sabedoria antiga, e tentava se lembrar do que era.

Um homem parou ao seu lado. Seu manto escuro era pesado o bastante para não esvoaçar ao vento, e amarrado com uma corda na altura da cintura. Ele usava sandálias, e tinha um rosto severo, vermelho, encoberto por uma barba branca e longa. Ele saudou o jovem nobre, que levou a mão do sacerdote aos lábios.

O que está fazendo aqui, jovem Aonghus? Não deveria estar sozinho, não é seguro. Os pictos podem estar por perto.

Nós conseguimos uma trégua, padre Aédan. Não precisa se preocupar.

Não podemos confiar em pictos. São cães infiéis, menos que animais. Não podem ser considerados confiáveis até que todos se convertam à fé verdadeira.

É, talvez você tenha razão.

O que está olhando, rapazinho?

O mar, padre Aédan, o mar.

O mar! Bah, para que olhar para o mar?! É para os céus que você tem que olhar, garoto Aonghus, e implorar pela graça divina, do nosso pai eterno, do seu filho abençoado, e de Santa Brígida, madrinha do Cristo abençoado!

Eu só estou olhando o mar, padre Aédan; há pecado em olhar o mar?

Está me censurando, jovem? Censurando uma autoridade da Santa Igreja? Cuidado para não conseguir sua passagem direto para o fogo ardente do Inferno!!!

Fale-me sobre isso, padre Aédan; por favor, me diga onde fica o Inferno?

O Inferno é o mundo embaixo do mundo, jovem nobre, uma terra de fervor nas profundezas para onde vão os mortos indignos da salvação de nosso senhor.

Então, ele fica embaixo do mundo, e é para onde os mortos vão.

É engraçado.

Engraçado??!! Debocha dos ensinamentos de Deus???!!!

Não, santo padre. Eu só estou me lembrando das velhas histórias. Parece que os pictos acreditam em algo parecido. O Mar, pelo que me lembro, era visto como a entrada para o mundo dos mortos, para onde os reis e nobres da Irlanda iriam. Os grandes homens, louvados em canções, poemas e elegias. Um de seus nomes era Tir Fa Thonn, “a Terra Sob as Ondas” e, esse nome parece algo como estando nas profundezas, onde as ondas rolam interminavelmente e as ilhas sagradas nos aguardam. Por isso, eu penso no Inferno; meus ancestrais estão lá? Estão no Inferno? Ou aqueles homens nobres e altivos chegaram a sua recompensa eterna na Terra do Eterno Verão? Você me fala do Inferno, e me pede para implorar, mas as histórias antigas apenas me falam da alegria que o Outro Mundo do Mar nos traz. E nem só do Outro Mundo, mas desse. O mar nos traz fartura, sustentação e alimento. Nossos ancestrais cruzaram o mar para chegar ao Dál Riada, e para o mar nossas almas retornarão na hora da morte.

Você fala de histórias antigas! Mentiras contadas por um bando de infiéis que louvavam árvores, florestas e pedras.

Essas árvores, florestas e rochas eram sagrados para eles, santo padre. A Terra onde eles eram criados era sagrada. Nos bosques, eles viam espíritos, e isso trazia reverência. Aos espíritos da Terra, que habitavam a colina, eles pediam por boas colheitas e pelo bom clima, enquanto o seu deus, pelo que você diz, apenas no castiga por nossa falta de fé, mesmo quando engrandecemos sua igreja e levamos sua fé junto conosco para onde quer que nosso povo vá. Nosso povo acreditou nos Sidhe, nos espíritos da Terra sob nossos pés, que nos deu a vida, nos deu alimento, e nos deu guarida, tanto com o solo onde pisamos quanto com as árvores com que fizemos nosso teto, e com as pedras com que fizemos nossas casas. Hoje, cultuamos seu deus que nos castiga em igrejas frias feitas com as pedras da Terra, mas esquecemos da Terra que nos deu as pedras que formam a igreja, e nos deu a força nos braços para que ela fosse construída. Antes, nosso povo cultuava em meio a beleza das árvores, eles, mais do que vocês, entendiam a beleza da criação. Você diz que Deus criou a Terra, mas chama a Terra de profana. Eu vejo a beleza das árvores, a imponência das montanhas, o verde da grama e as cores da flores, sinto o vento e a chuva, o sol e o calor, e digo a você, nada é mais sagrado, mais digno de louvor que isso.

Cuidado, rapazinho. O Deus todo-poderoso está olhando do céu e pode lhe castigar!!!

Não apenas o castigo divino vem dos céus, santo padre. Do Céu nos temos o sol que matura nossas colheitas e nos deleita em calor. Do Céu temos as chuvas que alimenta nossas árvores, grãos e incha nossos rios. Do Céu temos as nuvens que os velhos deuses usavam para nos passar presságios. Do céu temos os raios de Lugh em luta contra seu avô Balor, lembrando ao mundo da batalha entre as estações. Do Céu temos as estrelas que traziam ensinamentos aos druidas. Do Céu, como o raio, temos o lampejo da inspiração, o Imbas, que vem queima a mente dos poetas como o fogo, e os lança a compor as palavras que contam a história de nosso povo e as lendas antigas que você tanto desdenha.

Você fala como um pagão, um idólatra!! Certamente queimará no Inferno!!!

Diga-me, padre, se quer tanto que eu vá para o Inferno, onde é sua entrada?

Você não pode ver, jovem insolente!! A porta do Inferno só é visível na morte para idólatras como você!!! Ela não existe no nosso mundo, assim como as portas do Paraíso!!!

Se não existem no nosso mundo como eu, ou minha alma saberemos como chegar lá. Eu nem me importo com esse lugar, por que iria para lá? Se ela não existe nesse mundo, não tenho sequer como chegar lá. Não é assim com os Três Mundos de nossos ancestrais. Nossos três mundos são ligados, a Terra, o Céu e o Mar, e o símbolo disso é uma árvore-eixo que bebe das águas subterrâneas primordiais, cresce no mundo terreno e cujos galhos bebem das forças celestes superiores. Nosso Outro Mundo não era acessível apenas na hora da nossa morte. Era a nossa escolha aprender a ver o nosso mundo como sagrado ou não, a reconhecer os espíritos da Terra, do Céu e do Mar ou não. Seu deus está distante no paraiso ao qual não temos acesso, seu Inferno não tem entrada no mundo, enquanto o nosso Céu está sempre acima de nós para nos inspirar, nossa Terra está sempre abaixo de nós para nos nutrir e fortalecer, e nosso mar está sempre ao nosso redor para guiar nossas almas. Os três são unidos em um grande triscele. Obrigado, padre, por me lembrar disso.

O jovem se levantou e voltou para o salão de seu pai, carregando a harpa. Ele havia lembrado o que seu povo havia perdido. E não deixaria que isso fosse esquecido de novo.

Publicado originalmente em barddkunvelin.wordpress.com

Wallace William
Enviado por Wallace William em 12/02/2014
Reeditado em 24/07/2014
Código do texto: T4687695
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