Ancestrais
Toda a família havia se recolhido para outros aposentos. Alguns, inclusive, já haviam ido embora. Alguns ainda chegariam, mas a maioria já havia feito a sua parte, e teria mais um papel a representar no dia seguinte. Então, acabaria. Ficaria a saudade, a lamentação, os encargos legais, mas o principal estaria terminado. Mas ainda assim, a menina ruiva não saiu do lado do caixão. Ela continuava lá, olhando o avô morto como se esperasse que ele se levantasse, desse a sua velha risada marota, e a pegasse no colo, pronto para contar uma de sua velhas histórias. Ninguém levava a sério as histórias do velho avô, mas a menina sempre as ouvia. E agora, ele estava ali, deitado, e não se levantaria. Não contaria mais histórias. E ela ficava lá, observando, tanto que nem ouviu os passos pesados no piso de madeira. Ela teve um pequeno sobressalto quando uma mão tocou seus ombros. Era seu tio, filho do homem que estava ali, esperando para ser enterrado.
Todos já saíram, menina. Vá para junto de seus pais.
Eu quero ficar mais um pouco, tio. Quero olhar pra ele mais um pouco.
Olhar para ele não vai trazer ninguém de volta,- ralhou o tio – ele se foi, e todos já nos despedimos. Vá para junto dos seus pais.
A menina bateu os pés e se voltou para ele. Olhou para cima, fitando os olhos do tio. Ela tinha o espírito forte, e não recuaria.
E por que VOCÊ está aqui? Eu te vi no velório! Você nem chorou!!! Você veio aqui pra quê?!!!
O homem olhou para a criança, sem expressão nenhuma. Apenas a fitou, sério. A menina retribuiu o olhar, esperando uma resposta. Os dois ficaram quase um minuto parados, olhando um para o outro. Finalmente, ele puxou uma cadeira e se sentou.
Ele te contava histórias? – perguntou ele.
Contava, contava muitas histórias? – a menina respondeu.
Ele sempre fez isso. Era tão bobo. Mas ele fazia isso bem, muito bem.- um meio sorriso surgiu no canto de sua boca – Eu já me despedi dele, junto com todas as pessoas. Mas decidi que precisava agradecer também.
Agradecer? – a menina perguntou, confusa.
Pela vida. Pelo simples fato de estar vivo. Ele era meu pai, ele ainda é meu pai, e devo isso a ele. Devo isso a ele, e ao pai e à mãe dele, meus avós. E à minha mãe, e ao pai e à mãe dela, também meus avós. E a mais pessoas ainda, aos pais de meus avós, e aos avós de meus avós, e aos pais dos avós de meus avós. Devo agradecer a todos eles, simplesmente pelo dom da vida, de estar nesse mundo. Não fosse o sangue deles correndo em minha veias, eu não estaria aqui vendo o mundo, suas altivas árvores, belas montanhas e rios. Não estaria ouvindo a beleza da música, o esplendor das histórias ou a sua voz nesse momento. Por isso, eu agradeço a ele. Por isso eu agradeço a todos eles, e a mais pessoas ainda. Porque estou vivo. E você também deve agradecer, criança. Comece por ele, por eles, agradeça aos seus Ancestrais. Depois, saía daqui e vá agradecer meu irmão e sua mãe por isso também. Você deve isso a eles.
A criança franziu a testa, mas entendeu o que o homem queria dizer. E perguntou:
Tio, então temos que agradecer a todos os nossos parentes que já morreram?
Mais ainda, criança, mais ainda, – o tio continuou- temos que agradecer a todos os que aqui viveram antes de nós, aqui nesta terra, que a permitiram crescer, e se tornar o que é hoje. Ou você acha que nossa família foi a primeira a morar aqui. Já haviam pessoas aqui, e nós simplesmente vivemos dos resultados do trabalho delas, que é anterior. Claro que temos nossos méritos, mas gosto de pensar que os espíritos destas pessoas nos olham com orgulho por continuarmos a trabalhar onde eles começaram tudo, e agradeço a eles por isso. Afinal, essa foi a casa deles muito antes de ser nossa, e é nosso dever reconhecer sua hospitalidade.
A menina continuou olhando o tio.
Tio, porque só você não chorou?
Porque eu não tenho motivos para chorar. – respondeu o homem, sorrindo.- Claro que não queria que meu pai se fosse tão cedo. Mas sei que ele está bem. Ele te contou a história das almas que viajam de barco para as ilhas do Outro Mundo?
Sim, ele contou. Ele aprendeu essas histórias com o pai dele?
Não, não aprendeu com o pai dele. Ele as aprendeu com outras pessoas. Mas ele entendeu o sentido, e percebeu a verdade mais profunda por trás delas. Que as nossas almas não dependem de nossos corpos, e que elas partem para uma nova jornada após seu tempo neles terminar, para um dia, talvez, voltar em uma nova existência. A essas pessoas, que acreditaram nessas histórias antes de nós e as preservaram para o mundo, nós também devemos ser gratos, pois elas nos ensinam não só a imortalidade de nossas almas, mas também seus valores, seus mitos e seu modo de vida, que hoje poucos lembram, mas que tanto nos fazem falta. Agradeça a eles também.
A menina sorriu, e foi correndo para a sala para encontrar seus pais. O tio olhou para o corpo do pai por um momento e sorriu:
- Obrigado por isso também. Que sua viagem seja tranquila, e que se encontre com todos esses do qual falei, após aprender com você, no banquete dos Deuses, na Planície das Maçãs. Agradeça a eles por mim.
Publicado originalmente em barddkunvelin.wordpress.com