Diário
Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.
Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!”
6h30 – Maria* se levantou mais animada que de costume. Rapidamente veste a blusa encardida e o shortinho puído. Vai ao banheiro, lava o rosto e escova os dentes com a escova de cerdas gastas e sem creme dental. Toma um gole de café requentado, pega a mochila sem zíper e aproveita para se olhar no espelho da penteadeira. Acha-se uma princesa. Aquele era um dia especial.
7h – Maria está no final da fila da primeira série. Era a maior de todos. Demorara-se a ir para a escola e sempre se achava meio deslocada no meio de tantas crianças. Mas, hoje, Maria nem se importava. Nem olhava em volta. Nem ouvia as provocações dos colegas da quarta série. Ela se sente o centro das atenções. Louca pra ir para sala de aula, Maria esta impaciente. Aquele dia era especial.
9h30 – Nada acontecera na primeira parte da aula. Mas, do recreio não passaria. Maria nem vai pra fila da merenda. Fica margeando ora a professora, ora a rodinha de colegas que se formava para jogar “adoleta”. Faz tudo pra chamar atenção… Nada. Mas, não importa, aquele era um dia especial.
11h – A professora se levanta da mesa. “É agora!”, Maria pensa. A professora manda que todos guardem os materiais e façam a fila na porta da sala. Maria, rápida, ajeita suas coisinhas, abraça a mochila e posiciona-se no fim da fila. Seria agora? Não, não foi, mas não importa. Maria estava louca pra chegar á sua casa. Lá sim, aquele dia seria especial.
11h45 – Maria corre pelos cinco quilômetros de estrada poeirenta que a leva à sua casa. Pareceu serem dez quilômetros. Enfim, sua casinha com paredes de barro e telhado de sapé surge no fim da curva. Maria apressa-se ainda mais. Sua mãe deve estar esperando na porta, afinal, aquele era um dia especial.
11h50 – Maria entra em casa. Silêncio. Tudo vazio. Ninguém. Maria vai ao fogão, destampa uma panela: feijão. Outra: angu. Mais nada… Como em todos os dias… A fome é grande. Maria come esbaforida. Uma pontinha de choro quer escapar da garganta. Maria tranca a boca. Não chora. Preocupa-se em arrumar a cozinha, varrer o terreiro. A tarde chegaria logo, e com ela, a sua mãe. Aí sim, seria um dia especial.
18h – Já era pra mãe ter voltado. Maria está preocupada. Vem vindo alguém na estrada. Não é a mãe. É o Sr. Antônio*. Maria chega a carinha morena na janela. Seu Antônio diz: “D. Geralda* foi internada. Parece que seu pai deu outro couro nela. E ela ta com pneumonia também.” Seu Antônio vai embora. Maria aperta os olhinhos. Uma lágrima escapa. Mas, seu pai chegaria logo. Claro que ele viria. Aquele era um dia especial.
23h – Maria ouve um barulho no terreiro. Corre. Abre a porta. O pai entra. Maria sente o cheiro forte de álcool. Acende a lamparina. O pai tropeça no degrauzinho da porta. Maria o ajuda a entrar. O pai se senta no banquinho de madeira. Olha pra Maria de um jeito diferente. Levanta-se cambaleante. Vai até ela. Abraça-a. “tenho um presentinho procê, menina”. O coraçãozinho de Maria se enche de alegria. O pai havia se lembrado!
23h30 – Maria está na cama. O nariz sangrando. A roupa rasgada. As pernas doendo e um gosto horrível na boca. O pai ao lado. Deitado. Dormindo. Roncando. Maria sente ódio, nojo, asco. O pai se movimenta. Joga a perna sobre Maria. Ela fica ali, quietinha, chorando baixinho.
24h – Finda-se o dia especial. Uma coruja pia bem pertinho da janela. Mau agouro. A custo, Maria empurra a perna do pai e se levanta. Cambaleia. Abre a janela. A lua branquinha enfeita o céu. A coruja pia de novo. Maria sente um arrepio. Uma certeza cortante invade sua alma. Ninguém precisaria contar a Maria. Ela já sabia. Sua mãe morrera. Maria acabara de viver o dia 22 de fevereiro de 1983*. Tinha sido o dia do seu aniversário de dez anos!
…
Maria nunca mais fora à escola. Até completar dez anos, permanecera em casa, com o pai e tudo aquilo que ele representava. Aos treze, fugiu e foi morar com um senhor de quarenta que, já há uns seis meses, andava rodeando-a e dando-lhe presentes e “conselhos” em troca de carinhos rudes. Dois anos depois, abandonou-o. Foi morar com outro e outro… Rodou pra tudo que é lado até que, sozinha, há três anos, chegou a Ubá. Em setembro de 2009, voltou à escola. Em março de 2010, recebeu o certificado de participação no programa Brasil Alfabetizado. Pela primeira vez na vida, assinou um documento com a caneta e não com o dedão.