Cena imposta, mesa posta

Ela detestava – odiava, abominava! – cenas melodramáticas – e aquela já havia sido ensaiada entre tantos panos, opacos ou transparentes, pesados, melífluos – mas lá estava aos prantos e gritos, acusando-o de mentiroso e traidor, cafajeste, filho de uma puta.

Outra em si alertou sobre desnecessidade de enfiar a mãe no meio; ademais, mesmo se mulher da vida fácil, que paralelo haveria entre a profissão de uma e o comportamento do outro? Afinal, ele havia sido educado por uma rainha e ensinado a tratar as mulheres como princesas – era o discurso.

Em eco, ela o ouviu defender - indignado - a mãe ausente. E nem era responsabilidade DELE se a mãe DELA nunca a orientara para enfrentar – e superar! - situações assim. A cena seguinte deu-se com ele batendo a porta, que não ficaria ali ouvindo desaforo.

Fora educada para ser boa moça, sim: cozinhava bem, mantinha a casa em elegante e quase imperceptível ordem, e, como bônus, era carinhosa – mas firme – com os filhos, um casal resultante de muitas tentativas e parto duplo, saudáveis, alegres e... e... educados. Pronto, era isso: e-du-ca-dos. Aplicava-lhes psicologia direta e reversa, aprendida em manuais e workshops, tudo temperado com amor absoluto, que nem feijão de ontem, e as crianças cresciam e brilhavam e quase a esgotavam.

Quase...

Ela usava com parcimônia e racionalmente o dinheiro que ele punha na conta da família, todo mês, fruto do trabalho difícil e de sua distância de casa, e fazia o mesmo com os recursos emocionais, porque isso sua mãe lhe ensinara: comida boa, sem exagero. Nem todo dia é dia de filé; carpaccio, então!...

A Outra, quieta no canto menos iluminado do quarto bem decorado com tema das mil e uma noites. Os olhos redondos e muito azuis – pura incongruência, bem poderiam ser amêndoas escuras! – brilhavam cautelosos, e ela notou a veia pulsando nervosa abaixo do queixo. Mais uma cena clássica, clara...

O choro esmaecera, mas as faces ainda estavam um desastre, que ela arrematou espalhando o resto do rímel com as costas das mãos. Respirou fundo, outra em si reconhecendo o cheiro de homem e mulher no cio.

A Outra era alta e bem proporcionada, os seis fartos, quase saltando do bojo do sutiã, barriga pouco saliente e pernas fortes encimadas por ancas concretas. Nem se diria bonita, mas os cabelos castanhos escuros descendo revoltos por espáduas e colo, sentindo falta da trégua após a cama, davam certo tom à coisa toda. Ela imaginou a longa cabeleira seguindo os passos da boca no corpo dele, e lembrou do bolo de chocolate fofo e molhado que deixara esfriando, a esperar cobertura.

E recordou dos doces deliciosos - que ele lhe levava depois de encontros de negócios que se iam por madrugadas ou tardes - sobremesas de restaurantes da moda, embaladas para atender outros sentidos além dos olhos. Pensou nos cheiros também doces, impregnados nele, quase se confundindo com o das ambrosias, bombas de rum, pudins de limão, coco, baunilha...

Pensou no carro de luxo que consumia horrores, mas era um conforto só, e no colar de pérolas rosadas e translúcidas que ganhara na semana passada.

Mulheres são princesas.

Dessa vez ela inspirou compassada e propositadamente, buscando certo odor na coisa toda; encontrando-o, apalpou, lambeu, deglutiu.

Caminhou até o canto do quarto árabe e postou-se calma frente à Outra; tocou as mechas que terminavam em caracóis grandes e lentos; subindo as mãos até a face, passou devagar os dedos indicadores pela boca pequena, quase infantil; cerrou os olhos para tatear melhor o cheiro, uma das mãos mais calma ainda na artéria louca.

Levantou as pálpebras, pesadas, e reconheceu outra em si nas íris claras da Outra, quatro pupilas dilatadas e iguais.

"Você me ensina" – questão, apelo, ordem, amálgama de necessidades, desejo puro inexorável...

Inclinou-se objetivamente sobre as curvas generosas, no cheiro e gosto do seu homem, no gosto cheio de si, apertando aquela coisa toda como quem desatasse um nó. Riu, tranquila: dedo de moça, feito com uva branca.

Todas as cenas são nítidas – entendeu.

Gina Girão
Enviado por Gina Girão em 31/01/2014
Reeditado em 31/07/2023
Código do texto: T4672201
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2014. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.