A Oleira

Um dia, sem avisar, ele foi embora. Ficaste, Zélia, parada no caminho onde todos os dias o aguardavas, até que, caída a noite, voltaste a casa para escutar os ralhos da tua mãe, os insultos do teu pai e os olhares ferozes de Joaquina, a tua velha tia. Adoeceste, contaste-me, e só passados muitos dias, voltaste à olaria. Cabia-te a tarefa de fazer os potes, as panelas, os vasos e as talhas, ainda em uso na região, peças que o teu pai vendia na feira definindo o preço pelo ar do comprador ou pelo interesse que manifestava. Nesse dia, porém, magoada pelo abandono, espremias o barro e nenhuma forma útil brotava dos teus dedos. A roda girava à velocidade dos sentimentos, veloz na raiva, dolente logo que a fonte dos teus olhos se abria para o desgosto manso mas nada resultava em pote, vaso, talha ou ânfora, os objetos da tua profissão. Continuaste o resto da manhã a mexer no barro por nada mais poderes fazer. A certa altura, porém, os dedos começaram, sem que o espírito os acompanhasse, a definir formas andróides, monstros que poderiam ser gente estropiada ou animais de fábula. Primeiro uma cabra com duas cabeças, a seguir outro boneco satânico com cauda e presas que lhe galgavam os beiços e, depois, mais meia dúzia de seres estranhos. Eram a expressão do teu sofrimento, o corpo da deceção, o caminho da tua imaginação pelos escolhos de uma vida que se finava ali, a estiolar em desespero e solidão. Foi na altura em que te preparavas para os destruir que, por mero acaso, eu entrei. Precisava de vasos para as begónias mas quedei-me perplexo e fascinado a olhar para a bancada onde acumulaste os bonecos do teu desespero, os tais que começavas a partir para aproveitar o barro, quando cheguei. - Leve-os ao forno, Zélia, e eu lhos comprarei pelo preço que ajustarmos. Incrédula, acenaste com a cabeça, ajeitaste o lenço estampado e, com as costas da mão limpaste o suor e as lágrimas. As peças saíram do forno vermelhas, talvez mais vivas ainda. Quando voltei à olaria já te levava os pigmentos para fazeres tintas e, caso estivesses de acordo, os próximos seriam coloridos. Poderias fazer comigo uma parceria, propus: farias tu os bonecos e eu vendê-los-ia. O nosso negócio prosperou. Nunca faltou, em Portugal, mercado para a originalidade artesanal. Ia tudo muito bem até o povo da terra começar a pensar que eram bonecos do mal, amuletos de bruxos, coisas para os rituais satânicos em que se envolviam os curandeiros e os videntes. Teimosa, continuaste a fazê-los e eu a tentar vendê-los em Lisboa. Apesar da tua juventude e beleza, a fama de bruxa cresceu e nenhum homem da região te queria. Dizia-se que saltavas para dentro das fogueiras sem te queimar, que te viram arrancar olhos aos sapos, que cozinhavas nas talhas da salga, corações humanos para filtros de amor... A seguir à morte da tia Joaquina, morreu o teu pai e a tua mãe, agora sozinha a maior parte do tempo, recolheu-se, voluntariamente, ao Lar Paroquial. Só depois, regressado de França, o teu antigo namorado apareceu no povoado. Trazia ares de rico e ria-se com o que lhe contavam de ti. Admirou-te de longe mas nunca se reaproximou. Quando o ostracismo ficou maior que o que poderias suportar, com a minha ajuda, mudaste a vida para Lisboa. Somos sócios numa loja de artesanato e as tuas peças ganham mercados internacionais. Voltaste a estudar e, aos trinta anos, ainda és uma bela mulher. Se não fosse a tua ideia de casar de branco, no próximo verão, na matriz da tua terra, já teríamos formalizado a nossa união.

Edgardo Xavier
Enviado por Edgardo Xavier em 26/01/2014
Reeditado em 26/01/2014
Código do texto: T4665669
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