Ritinha, uma criança problemática

Quando nasceu foi um desvelo. Amavam-na. Já não era esperada porque a mãe tocava os quarenta quando a concebeu e o pai, já aposentado, além das sessões de sexo criativo e exuberante, pouco mais fazia que incomodar os vizinhos com uma agressividade sempre arrogante. Aquela filha representou enormes mudanças em todos lá de casa. Natália, a empregada, foi a primeira a sentir o mau génio da menina que era capaz de gritar horas a fio mesmo sendo embalada a noite toda. A D. Gertrudes, avó materna, depois que a pequena lhe mordeu o indicador guardou sempre distância e os pais, admirados com o génio da menina, viam-na como um estorvo. Puseram-na no infantário e foi um verdadeiro desastre. Aceitavam-na, disseram, mas teriam de pagar mais do dobro da mensalidade por exigir uma funcionária sempre atenta. O psicólogo chamou-a hiperativa mas a grande maioria das vezes a Ritinha era rotulada com palavras mais agrestes de que estupor da criança era a expressão mais suave. Aos oito anos, porém, descobriram que, se lhe dessem tintas e pincéis, papeis e telas ela ficaria tranquila muito tempo. Usaram o seu prazer de pintar para negociar a leitura, as contas, o beijo às visitas... Ritinha fazia de tudo para obter novos materiais e ficava em fúria quando lhos negavam. A professora sempre achou horríveis, macabros e ferozes os desenhos e as pinturas e os trabalhos dela eram os únicos que ninguém queria permutar ou até só receber como presente. Conheci-a quando, já adulta, ela se inscreveu numa área que a fazia minha aluna. Mesmo habituado à irreverência ainda assim me espantei com a raiva permanente da Rita Vasconcelos e com a sua capacidade de ofender e agredir todos os que a contrariassem. Decidi ter uma conversa séria com ela. Quando apareceu com meia dúzia de desenhos diferentes a sair de uma pasta que trazia a tiracolo, pedi para os ver. Mostrou-mos por esperar chocar-me como acontecia com toda a gente. Acontece que eu cultivava o gosto pela obra de Basquiat e pelas coisas fortes, imediatistas, emocionadas e disse-lhe que gostava verdadeiramente dos trabalhos que me mostrou. Um silêncio pesado caiu entre nós. Eu esperava uma crise de cólera porque era a reação mais comum naquela aluna e ela, espantada com a minha adesão aos seus trabalhos, não sabia o que fazer ou dizer. Quando percebi que teria de provar a verdade das minhas palavras, decidi mostrar-lhe as minhas pinturas. Ficámos logo amigos e ela acabou sendo uma aluna exemplar. Quando , finalmente, se formou, casámos. Um dos nossos gémeos nasceu com a antiga raiva da mãe e só se acalma quando pode fazer desenhos e pintar. Chamam à nossa casa a galeria dos monstros mas nenhum de nós se ofende.

Edgardo Xavier
Enviado por Edgardo Xavier em 24/01/2014
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