Intangível.
Geralmente, dois corpos não podem ocupar o mesmo ponto; o que não aconteceu naquele dia, naquele instante de fuga de uma mãe irada e seu cinto certificado de couro legítimo (única peça de valor da casa de pedreiro e diarista, além de respeitado instrumento de ordem numa família de muitos filhos).
Correu o quanto pôde, com aquelas perninhas finas, e o tênis "Bamba" não laceado calejando os pés, mas a mãe era atleta na captura de frangos, certamente o pegaria antes de dobrar outra esquina
Ele devia se esforçar um pouco mais! Fingiu ir para a esquerda, mas, indo pela direita, milagrosamente escapou da mão ossuda da mulher, a qual foi atrasada pela surpresa da manobra e uma tira quebrada da sandália!
Ele sorriu, e ela fechou os olhos quando viu que o filho era alvo distraído de um Opala, no meio da rua!
O "quase acidente" foi estranho! O corpinho teve arrepiado seus poucos pêlos, como o que associou posteriormente à estática dos tubos de televisão, e sentiu um vapor de partículas invasivas se confundir com suas vísceras!
A mãe presumiu que houve um desvio, o motorista negligente escapou, e ele resolveu guardar silêncio a respeito da proeza!
Num outro dia, um pouco "maiorzinho", despencou do trançado da rede, e ao conferir, descobriu que o tecido não sofrera rotura!
Outra vez, e a colher lhe escapou do aperto forte da mão enquanto esvaziava a marmita!À essa altura já era "homenzinho" aos 9 anos,e "virava massa", empilhava tijolos e trazia o café quente para animar os esforços do pai.
Era muito estranho, mas ele preferia manter segredo!
Aos doze ergueu sua primeira parede! O pai lho havia ensinado a arte do nível, do esquadro e da trena; e fiscalizava meio emocionado a precisão do alinhamento e a solidez da empresa.
-Ficou bão! Tá firme e retinho! Pode rebocar agora que depois te ensino erguê pilastra!
O garoto, muitíssimo orgulhoso, deixou ir o pai para experimentar o que construíra. Tocou a superfície e, no início era tão rígida quanto a moral do instrutor, mas logo passou a uma consistência dos doces sovados da avó, e, respectivamente geleia, gelatina, água e nuvem!
A mão espantosamente atravessara da matéria, ao lote vizinho!Quis saber se não era sonho e experimentou transpor a cabeça!
Havia muito mato do outro lado, achou que deveria se oferecer para carpir, por um bom preço, a propriedade do companheiro.
Mas, assim como o vacilante Pedro sobre as águas, quando o pai chamou o susto lhe estreitou a garganta, então foi se solidificando e se fundindo à viscosidade momentânea da construção. Forçou seu escape com as palmas, mas vez o toque era firme, vez não passava de fumo!
O fôlego rarefeito já lhe desconjuntavam o movimento, sentia uma certa febre no pescoço, e uma dor de esforço nos lombos!Os olhos lacrimejavam muito, ameaçando saltar das órbitas, e das narinas escorria um ranho ensanguentado.
Era certo que morreria! Apagou!
O pai lhe acordou com um banho de moringa, conferiu os esfolados do corpo e consultou as batidas do coração.O garoto parecia confuso, e tentou responder às preocupações do pai com as melhores desculpas que dispunha!O pobre homem não era dos mais espertos, e logo ficou acertado que fora vertigem e tombo!
O garoto enxugou o rosto, apanhou a colher de pedreiro e voltou ao serviço!
Seus horizontes se expandiram com a percepção das novas habilidades, e sabia de si que já há algum tempo era meio homem, meio fantasma, mas preferiu continuar sendo apenas um bom pedreiro!
Anderson Dias Cardoso.
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