O BRINQUEDO QUEBRADO




Toda criança vivencia sonhos, vontades, imaginações.
E é apenas quando crianças que somos iguais, ou, quase nunca, tão diferentes.
À esse tempo o mundo é próprio, as aspirações são próximas, quase vizinhas, e estão quase sempre pertinho... como ao dobrar da esquina mais próxima.
E ainda, quando à esse tempo, quantas disparidades vividas, mas nunca, nunquinha, vivenciadas.

Viver é incontestavelmente o maior privilégio da idade pequena!

E é quando verdadeiramente apenas vivemos, e nunca vivenciamos.
Vivenciar é compreender o sentido das coisas, e isto somente é possível quando crescemos. quando em essência, a tudo vivenciamos.
De repente, tudo é real... absolutamente real. É como se os sonhos, se as fantasias, desaparecessem, ou fossem morrendo gradativamente.
- É como se já não vivêssemos mais os mesmos encantamentos.
O glamour de nossa existência parecesse morrido, não como uma morte matada, mas como uma coisa que foi desaparecendo aos poucos, e que ficou na gente sepultada, ou foi gradativamente perdendo a luminosidade.

E é quando crescemos que admitimos nunca mais ser como antes... Detentores do mundo, senhores do universo.
É quando admitimos não podermos mais nada, ou se pudermos, com restrições, ou não mais nos sentirmos permitidos a tudo.

Infelizes serão aqueles que reclamam o que não foi vivido.
E que somente agora é vivenciado.
E que, as vezes, inconvenientemente, fazem a tudo excessivamente, ridicularizadamente, porque fazem tardiamente, após crescidos.
É por isso que as vezes o Velho dança, se escandaliza, se ridiculariza em praça pública.

E se à esse instante, quem saberia dizer dos nossos sonhos, de tudo que fora imaginado?
- Ninguém...! Tudo seguiu na carruagem do tempo. E o tempo não pára, não espera, não faz meia-volta, e não concede explicativas a quem interessar possa.
- E aqueles que ficaram pelo caminho...?
- Esses... Esses nem o tempo dirá... Seguiram por uma estrada que não era a nossa. E a vida nos será sempre cheia de bifurcações.

Assim fora a minha rua de criança... - A rua Santana - ... Uma rua de chão batido, de casas simples e conjugadas, mas como um espaço circunscrito, e à parte, dentro do Universo.

E assim fora Carlinhos, um colega de infância, e com possibilidades pra tudo.
- Parecia ter nascido Iluminado, mas, fadado aos caprichos paternos.
Criou-se com a gente; no meio da gente; mas sempre afastado um tantinho de nós. Parecia existir uma fronteira; um marco imaginário delimitando-lhe os espaços. E parecia que sempre lhes foi dito dessa diferença. E a tudo encarávamos com naturalidade. Pareciamos não considerar estas desigualdades.
E apenas agora, crescidos, é que vivenciamos certas constatações.
Uma orientação lhe foi posta... - Não se misturar com os moleques da rua.

Carlinhos era um menino bonito; cheio de posses, quereres, e pleno de satisfações. Até o imaginávamos a criança predileta de Papai Noel, pois apenas ele ganhava presentes de Natal.
Assim eram as nossas concepções.
Quem do nosso círculo não gostaria de ser como o Carlinhos!?
- Privilegiado em tudo!
- Até mesmo a casa onde morava, era separada da nossa... Não era conjugada. - Isso fazia a diferença?

Mas éramos amigos... grandes amigos. Embora um dia tenhamos brigado feio... de verdade.
É q'ele mangou das minhas orelhas... Chamou-me de Toppo-Giggio; de Papa-figo; daí eu num gostei. Mas, à excessão desta briga, sempre nos damos bem.
Além do mais, criança nunca odeia, né mesmo?

Tínhamos nossa brincadeira preferida... Mocinho e Bandidos, e até aí era um privilegiado. Ele tinha o revolver da Estrêla, que atirava espoletas de papel; insignias de xerife e tudo mais, e aquilo nos fascinava, daí, apenas ele podia ser o Cow-boy.
E nós sonhávamos com aquele brinquedo, embora soubéssemos que nunca teríamos algo equivalente... Era caro, e somente encontrado em lojas de cidades grandes.

E pra surpresa minha, um dia ele veio a minha casa, dizendo que queria falar comigo, e trazia um embrulho na mão. E foi direto ao assunto: - O meu revolver quebrou, num atira mais... - Quer ele pra você?
- A minha mãe disse q'eu o desse a um menino pobre, e que fosse muito meu amigo, e o meu amigo é você, e você também é pobre, num é?
- Tome... É seu!
E como não querendo acreditar naquilo, tomado de alegria, concordei com suas colocações. Imaginei até, q'eu parecesse mesmo com Toppo-Giggio, com Papa-Figo, e que nunca deveria ter brigado com ele. Afinal, Carlinhos se declarava meu amigo.
E se estava quebrado, se num atirava mais, num fazia diferença, eu atirava com a boca... - pá, - pá, - pá... era assim que fazia o novo Cow-boy da rua.

Mas um dia Carlinhos foi embora.
- Nunca se soube exatamente pra onde -
O seu Pai era engenheiro do D.N.E.R (Departamento Nacional de Estradas e Rodagens), pra nós, um homem muito importante, e fora transferido, daí, foi-se também o nosso colega de infância.
E desde aquele dia nunca mais soubemos a seu respeito, E. talvez, por conta disto, imaginávamos as hipóteses mais absurdas, mas, que por sermos crianças, não as imaginávamos tão absurdas assim.
- Alguns achavam que ele morava num Castelo de Ouro, lá no Estrangeiro. E o estrangeiro parecia-nos um lugar além do que pudéssemos conceber.
- Eu admitia q'ele morava em Printed... Numa daquelas paisagens bucólicas de calendários de fim-de-ano, com carneirinhos e grama verdinha, diferentemente do sertão onde vivíamos.
E por muito tempo ele continuou fruto de nossas maiores interrogações.

Os anos passaram; a infância seguiu adiante; e tudo parecia morrido.
Rapaz feito, fui morar em Recife. Precisa continuar os estudos e cumprir a minha vocação... Ser Veterinário... E somente lá havia a faculdade.
E nunca mais ouvi falar de ninguém.
É como se tudo tivesse acabado; aquele mundo, morrido.
Ou bem mais que isso... Como se os sonhos de infância tivessem exauridos. De repente, cada um seguiu seu caminho, e esses caminhos, fizeram com que nunca mais nos encontrássemos.

- E Carlinhos...? (Êita... ia esquecendo de Carlinhos!)

Um dia, quando eu voltava da praia, entrei num bar pra matar a sede, e tive a impressão de alguém conhecido na mesa do bar.
E fora imediata a constatação... - Era Carlinhos...!
De imediato a ficha caiu... e caia por terra todas as imaginações de criança. Ele não morava num Castelo de ouro, nem no Estrangeiro, nem em Printed. Ele morava ali, em meio aquelas garrafas.
E já não era o mesmo de antes.
Estava desfigurado, de semblante abatido.
Daí fiquei a imaginar:
- O quê acontecera com o meu amigo?

Como ao impulso por d'uma força misteriosa, ele virou-se e me viu, e ficou me olhando como buscasse na memória alguém com aparência familiar aos olhos, como se me procurasse em algum lugar do passado.

Dirigi-me até a mesa, cumprimentei-o, e me apresentei.
Ele levantou-se, abraçou-me, e se fez em lágrimas.
Conversamos bastante, relembramos a infância feliz, e até do brinquedo quebrado.
Mas algo não me fazia sossegado:
- O que teria acontecido com o meu amigo... agora, meu desventurado amigo?
E como captando as minhas impressões, enxugou as lágrimas; desculpou-se pela emoção; esboçou-me um sorriso amarelo.
Depois... Gesticulou pro garçon, pedindo mais uma cerveja...
- E contou-me toda a sua história!