Fôlego de gato
José Vicente de Araújo, conhecido por Zé Gato, ganhou este apelido por suas qualidades, uma delas de reputação negativa.
Homem forte, um metro de oitenta de altura, bem distribuída musculatura, peso dentro do biotipo de atleta, era bom goleiro, rápido e ágil como um gato.
Outra característica sua - aliás, um defeito: gostava de pôr a mão no alheio. Em outras palavras: era ladrão.
Jogando na equipe titular do Clube Variedades, de sua cidade, era o responsável por vários jogos sem perder. Saía bem da meta, tinha agilidade nas bolas altas e nas rasteiras. Esta característica - bola rasteira - é normal em goleiros mais baixos. O seu um metro e oitenta o colocava na média dos goleiros, ou seja, no limite mínimo daqueles que não cobriam bem a zona rasteira de sua meta.
Além da impulsão, tinha um reflexo rápido e definição perfeita da trajetória da bola a perseguir. Nas cobranças de pênaltis, vigiava apenas a bola, deixando que o adversário fizesse suas firulas, sem se preocupar. E saía à cata da redondinha depois de ser chutada.
Nos vestiários, após os jogos, seus colegas começaram a sentir falta de relógios, pulseiras e outros pertences, sem saber quem os estava roubando.
— Minha carteira está mexida — gritou Zangão, o centroavante.
— Falta alguma coisa? — perguntou-lhe o técnico, Zito.
— Sim. O dinheiro que tinha para comprar a feira da semana.
Este diálogo, com algumas variações de objeto e personagens, repetia-se todas as vezes em que Zé Gato estava defendendo a meta do Variedades.
Zito, assuntando as ocorrências, relatou a seu amigo Nando, investigador.
— Deixa estar, que eu vou dar umas investigadas, Zito. Chego ao ladrão em três tempos.
Nando começou a investigar pelas residências dos jogadores. Ia à casa de cada um e rondava por ali algumas vezes, vendo se notava algo anormal. Queria ver se alguém estaria utilizando objetos que foram surrupiados dos jogadores.
Um por um, até chegar à residência de Zé Gato. E encontrar sua mulher, Marilda, com uma pulseira de ouro que fora pertencente a Felipe, zagueiro da equipe.
Voltou a Zito e relatou.
Zé Gato passou maus bocados explicando-se na delegacia.
Desde então, os objetos deixaram de desaparecer. Zé Gato passou a ser vigiado ininterruptamente enquanto estava com os companheiros de clube. Estes também deixaram de sair com Zé Gato para suas farras e noitadas.
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Marilda tinha vida dupla, também.
Enquanto companheira de Zé Gato, vivia uma vida de privações, mas se apresentava com roupas novas, fruto de compras feitas com os dinheiros que Zé Gato lhe trazia além de sua feira normal como goleiro.
Nas viagens da equipe para jogar em cidades vizinhas, Marilda se via livre e também dava passeios. Ia encontrar-se com Josias, professor de Arte que lhe ensinara desenho e pintura.
Ela usava Zé Gato como pseudônimo, e assim assinava seus quadros, ainda elementares, simples.
Eram pinturas de óleo sobre tela que retratavam pessoas nas mais diversas atividades. Entre as mais evidentes estava o futebol.
Um traço identificador, marca registrada do Zé Gato pintor: um G estilizado, de onde saía uma mão em posição de “tocador de harpa” na meia distância entre o centro e o canto superior direito.
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Estava programada uma exposição coletiva de pintura na cidade vizinha à sua. Seria em uma semana em que Zé Gato estaria viajando com a equipe, e Marilda ficaria sossegada quando à manutenção de seu segredo, de sua outra identidade, outra atividade.
A exposição foi sucesso, e entre os pintores de maior venda estava Zé Gato, com suas figuras.
O pseudônimo, por ser masculino, fazia que Marilda ficasse no anonimato, mesmo durante a exposição, embora presente, acompanhando cada venda, cada elogio endereçado a Zé Gato.
O quadro de maior valor, vendido a um comerciante, retratava um goleiro fazendo uma defesa aérea. Rosto indefinido, não identificaria o que lhe serviu de modelo, o próprio Zé Gato.
Farinha, o comerciante, pôs a tela em seu escritório, em local bem destacado.
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O goleiro, agora já desmascarado como gatuno, o que lhe reforçava o apelido, vivia, em função dessa descoberta, momento difíceis como jogador. Andou aceitando alguns gols frangos, que desclassificaram a equipe no torneio ocorrido na época em que Marilda estava expondo suas telas.
Sua baixa performance o desqualificou como titular. Poucos jogos na reserva, e perdeu também essa posição. Deixou de jogar futebol.
Foi procurar emprego em venda (por ser de mais fácil aprendizagem- imaginou ele).
Longo tempo sem atividade, sem conseguir emprego... Zé Gato, no desespero, intensificou sua outra atividade. Passou a fazer pequenos furtos nas lojas onde procurava emprego.
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Os quadros de Zé Gato começaram a aumentar a cotação. Marilda, acompanhando à distância, via suas obras serem renegociadas e disputadas.
A marca registrada, antes despercebida, foi objeto de estudo por marchands, artistas plásticos, psicólogos... Não sabiam o que significava aquela mão.
Para não ser descoberta sua identidade, Marilda passou a freqüentar outro ateliê. Não poderia fazer o seu próprio. Precisava de manter o anonimato. E já não conseguia com tanta facilidade, tamanha era a fama que seus quadros estavam dando a Zé Gato.
Ele, Zé Gato, ao contrário, continuava desempregado, e a atividade ilegal cada vez mais difícil, pois não tinha personalidade de criminoso. Era ladrão, mas era bondoso, gentil. Jamais fizera um assalto ou arrombamento. Em verdade, não se sentia bem quando praticava um ato desses.
...
Houve outro torneio de futebol, e o seu time perdeu, também por responsabilidade do goleiro que o substituíra. Zé Gato foi lembrado. Seus companheiros, sabedores da fama que corria o pintor Zé Gato, imaginaram que o mesmo não aceitaria voltar, pois - pensavam - deve estar nadando em dinheiro.
Mas, mesmo assim, um empresário foi à sua procura. Imaginava que não deveria ser difícil o acúmulo das duas funções. Sua tara (a essa altura era tara, e não crime) seria relevada, em função de seu temperamento dócil e de sua desenvoltura como goleiro pegador que era.
— Zé Gato, amigo, venho lhe fazer uma proposta.
— Diga, doutor! Que deseja com um jogador em desgraça?
— Que desgraça?! Você é um vencedor! Soube dar a volta por cima!
— Por cima de quê? — perguntou Zé Gato.
— Ora, rapaz! Deixe de se fazer de difícil! Você sabe a fama que tem agora, pintor reconhecido.
— Eu??!! O quê?
Marilda, a um canto, ouvira o diálogo.
Calada estava, mais calada ainda ficou, temerosa da revelação de sua outra atividade, ainda sob completo sigilo.
...
Outra temporada como goleiro, e volta a fama - dupla fama - de bom pegador: de bolas e do alheio.
Os quadros de Zé Gato, já renomados, passaram a figurar nas galerias. Porém não havia mais nenhuma nova obra. Isso intrigava os marchands.
A pergunta “quem é Zé Gato?” persistia, agora ainda mais, pois as telas novas desapareceram e não havia pista da identidade do pintor.
Ao mesmo tempo, a fama do goleiro Zé Gato retomou a ascender. A má fama, esta era mantida em segredo por todos os que partilhavam sua companhia.
Passou Zé Gato da condição de gatuno para a de cleptômano.
Mostrava, com essa nova fase, que fazia jus ao apelido. Tinha sete fôlegos.
...
A manutenção do anonimato fez Marilda escassear a pintura. Alguns motivos concorreram para isso. A mudança de ateliê, com a conseqüente troca de professor, era a que mais influía. Não conseguiu manter a inspiração antes tão profícua. E tentava mudar os temas, para manter, a todo custo, o anonimato.
Resolveu mudar tudo. Voltaria ao antigo professor e trocaria de pseudônimo.
— Você não pode fazer isso, Marilda! Vai pôr fim a sua fama!
— Que fama? Eu não sou famosa. Zé Gato é que o é.
— E quem é Zé Gato, ora? — retrucou ele. Afinal, à sombra desse pseudônimo, conseguira elevar o número de alunos em seu ateliê.
— Ele está fazendo sua fama onde sabe ser quem é.
— Como assim? — perguntou, sem saber, àquela altura, que Zé Gato realmente existia. Não era pintor, mas era o grande inspirador (inconsciente) de Marilda.
— Ele é o goleiro do Variedades.
Com essa revelação, a pintora estava, agora, descobrindo que suas atividades eram como o sol e a lua. Quando um aparece, o outro entra em ocaso. Duas atividades, pessoas diferentes, porém o mesmo nome.
...
Nova fase ruim na equipe, ainda por conta da atividade paralela, e Zé Gato entra novamente em ostracismo, em depressão.
Nova dispensa.
Resolve dar fim a tanto martírio, causado (ele bem o sabia) pelo seu próprio comportamento irregular.
Despede-se de Marilda e vai trabalhar em uma madeireira, lugar onde ninguém o conhecesse, onde não houvesse chegado a fama de Zé Gato.
Despediu-se sem saber da fama do outro Zé Gato.
Agora só, largada, a pintora resolve assumir a identidade tão obstinadamente escondida.
Retoma a pintura e faz nova exposição.
No vernissage, eis uma Marilda exuberante, à frente de um cavalete, uma tela ainda inacabada, e um novo quadro do goleiro - agora levando um gol fraco.
Ao apor sua marca registrada, todos a reconhecem.
Após um recuo, movido pela inusitada revelação, a crítica volta ao elogio farto.
Marilda Zé Gato toma seu lugar.
Ao lado do G, em sua marca, a mão é substituída por um M.
...
Numa madeireira, na função de trabalhador braçal, Zé Gato sabe, por notícias de televisão, da fama de Marilda, usando seu nome.
Desgostoso, volta à cleptomania, que havia ficado sob controle por bom tempo.
Outro ambiente, outras pessoas, outra reação.
Uma trama entre os companheiros de trabalho está sendo urdida.
Uma enorme peça de paudarco deveria ser levada sobre ombros fortes do local do corte até a carroceria de uma carreta, que a levaria à serraria.
Sete homens, estrategicamente distribuídos, levantaram a peça e a levaram.
A ordem, por segurança, era que todos, em movimento sincrônico, jogariam a madeira para o lado e pulariam de imediato para o lado oposto. Algum descuido causaria acidente de proporções desagradáveis.
No momento da descarga, à contagem regressiva...
— No “já”, madeira à direita, homens à esquerda! - gritou o chefe.
— 3...
— 2...
— 1...
Todos jogam a madeira e correm.
Zé Gato, à espera do “já”, recebe a carga de 300 quilogramas sobre seu ombro direito, a vergar sua coluna.
Seu último fôlego... faltou.