Acostumado com o dedo

Plantaçãozinha nova de cana... já toda estragada! Os porcos ficam dentro dela a fuçar, acabando com toda a semente e os olhos que brotam.

Tal coisa estava deixando Veríssimo intrigado.

Veríssimo, um senhor-de-engenho antigo, mas com idéias novas, estava aumentando sua plantação de cana, pois pretendia iniciar a moagem nos anos seguintes já no mês de agosto, em vez de começar em setembro, como todos os seus vizinhos faziam. E queria pejar mais tarde, puxando a moagem até abril. Para isso, precisaria de aumentar em até 10 % a área plantada com cana. A soca, em boa parte do terreno plantado, era boa, e chegava até a tirar ressoca na área da várzea e Córrego do Ouro, regiões bem irrigadas e com bom massapê.

Ele chegara para aquele engenho havia já 20 anos. Era bem-quisto por todos os trabalhadores, e muito respeitado pelos vizinhos - senhores-de-engenho como ele - e foreiros de sítios de banana. Sua criação fora urbana, no comércio, onde aprendera a inovar e ser arrojado, para aumentar a clientela.

Com a saúde debilitada de seu tio Aprígio, foi chamado a tomar conta do seu engenho, numa propriedade de 250 hectares, com 2.000 toneladas de cana plantadas.

De cana, só sabia que produzia açúcar, porque vendia em grosso. Mas nada de conhecimento de plantação nem de moagem. Teve que aprender tudo. E, para isso, recorreu a revistas especializadas.

Mudou-se com mulher e filho pequeno para a casa-grande do engenho e tomou conta da moagem desde o primeiro dia. Aprendeu a prática com o mestre-açúcar, o destilador e o maquinista de confiança de seu tio. O resto foi aprendendo com a leitura constante e as experiências, tanto as que lhe apareciam de surpresa quanto as que criava, com o intuito de aumentar a produção.

Com o mestre funileiro, aprendeu a rebitar a caldeira, quando furava. Sabia que aquela, já bastante gasta, não agüentava muita pressão. Se passasse de 55 libras, era risco de furo. Com isso, a máquina teria que trabalhar mais folgada. As 60 libras exigidas para sua plena força eram arriscadas, podendo a moagem ser parada no meio, por falta de pressão. Quando isso acontecia, eram necessários 2 dias de parada total, até que toda a tubulação esfriasse e tivesse condições de conserto.

Com o fornalheiro, foi aprendendo a tratar o fogo com carinho, pondo o bagaço na proporção certa para um fogo suave e perene, para não ter - vez em quando - de desviar para o bueiro, perdendo força e material.

Com o mestre-açúcar, viu o modo de dar o ponto ao mel, para que tivesse um melhor rendimento e desse um açúcar de melhor qualidade, com pouco mel-de-furo.

O controle do caldo nas taxas era cuidadosamente observado, usando as devidas aditivações de cal e semente de carrapateira, para a limpeza e alcalinização corretas.

Aprendeu alguma coisa e quase que mais ensinou ao destilador, um mestre que tinha conhecimento empírico do seu afazer. Pegou os conhecimentos dele em medir o grau do caldo e da garapa, acrescentando o saber adquirido em leituras, sobre fermentação, desinfecção e contaminação bacteriana e metálica da garapa e aguardente.

Junto ao maquinista, quase nada aprendeu. O cuidado com máquinas já era rotina sua, embora de origem comerciária. Tinha passado algum tempo trabalhando na manutenção de uma estação de energia que o sogro instalara na cidadezinha onde morava, antes de ser chamado a tomar conta do engenho. Em suas observações viu o cuidado que ele tinha na utilização de pressão baixa, controlando a quantidade de cana colocada na mesa, na moenda, abrindo e fechando os registros de pressão e de fogo, controlando a pressão, etc.

Todo esse aprendizado o tornou renomado dono-de-engenho, respeitador e generoso que era com seus empregados - a quem prestava assistência de saúde em casos simples e transferindo para hospital na cidade quando havia necessidade - e arrendava sítios para a lavoura de subsistência.

Ficou respeitado por sua generosidade e, também, por sua coragem em abordar e se deixar abordar algumas pessoas que se faziam brabas e encrenqueiras.

Para se fazer respeitar, além da palavra mansa, que se fazia forte nas horas certas, tinha, para sua segurança, um revólver Taurus 38 cano curto, dois rifles Winchester “Papo Amarelo” e uma pistola Mouser.

Os compradores de açúcar e aguardente já o conheciam e reverenciavam. Pediam-lhe abrigo, nas grandes viagens que faziam na busca de mercadoria. E conseguiam pouso no grande salão do engenho, após parada da moagem, quando se fazia vazio. Veríssimo não negava um bom papo de anfitrião com os acoitados, indo em conversa até altas horas da noite.

Certa vez, entre os que lhe pediram abrigo, estava um estranho. Não lhe negou teto. E assim fez: à noite, foi conversar com o grupo ali abrigado.

Conversa vai, conversa vem, o desconhecido puxou assunto de arma. Veríssimo, aparentando ingenuidade, falou de seu arsenal. A um pedido do outro, voltou à casa-grande e dali veio, poucos minutos depois, com um rifle na mão. Mostrou-o ao interlocutor, dizendo:

— Este aqui não nega fogo. Tem uma boa mira, pouco recuo, e já está com uma bala na agulha.

— O senhor me permite examinar?

— Pois não! — disse, entregando, de imediato, a arma ao hóspede desconhecido.

De posse da arma, o homem começou a passear pelo salão do engenho, à guisa de examiná-la.

Foi e voltou umas três vezes pelos quatro cantos do salão. Por fim, devolveu o rifle a Veríssimo, dizendo:

— O senhor é muito corajoso. Como é que dá uma arma dessa, com bala na agulha, a um estranho?

E ele retrucou.

— Você passeou bastante por aqui, com a arma na mão. Durante esse tempo, observou onde eu estava postado? Não o deixei se afastar um passo de mim.

— Ora, e que isso tem a ver com sua coragem?

— Esse rifle é uma arma de cano longo. Para que você o aponte para mim, teria que dar recuo de dois passos. Tenho — e tirou da cintura o Taurus cano curto — isto na mão. Sou mais rápido.

...

Chegou a época da planta de cana. Terreno adubado, preparado, arado, iniciou o uso de semente nova, da cepa 3X, dura e com alto teor de sacarose. Separou, como terreno novo, para aumentar a área plantada (já estava com 4.000 toneladas de cana potencialmente plantadas em 40 hectares tratados) uma nova área, de mais 5 hectares, por trás do monte chamado Cunha, pela sua forma. E ali plantou a melhor semente. E ficou supervisionando.

Notou, nos primeiros dias de brotagem da planta, que as mesmas estavam todas arrancadas e comidas.

Estranhou o ocorrido e voltou em outro horário. Flagrou porcos soltos na plantação, tendo como vigia um garoto que Veríssimo não conhecia, por não morar em sua propriedade. Procurou averiguar, e descobriu ser trabalhador de um terreno de foro, cujo arrendante se estabelecera fazia poucos meses, trazendo com ele algumas pessoas de sua confiança.

Voltou no outro dia. Encontrou novamente os porcos na plantação. Ao se aproximar, viu o rapaz imediatamente a enxotá-los, para que voltassem a seu local de origem.

O mesmo aconteceu nos dois dias seguintes.

No quarto dia, usou outra estratégia. Fez um caminho mais longo, rodeou todo o monte e, voltando por onde os porcos deveriam sair, apresentou-se, pegando de surpresa o rapaz.

Sem ter como se safar, o rapazinho enxotou os porcos, como o fazia antes.

Mas os porcos correram ao encontro de Veríssimo, que estava no seu caminho. Foi puxar a pistola Mouser do coldre e apontar. Pum, pum, pum... Os porcos foram caindo, um a um.

No outro dia, voltou ao local. Não havia porco algum.

De volta a sua casa, recebeu a visita do rapaz. Recebeu-o, como sempre fez com quem se dirigia a ele.

— Senhor, eu venho trazer um recado do “seu” Artur.

— Quem é “seu” Artur?

— É o foreiro do Sitio Montes Claros. Ele mandou dizer que tem um rifle de longo alcance.

— E qual é o rifle dele?

— É um papo-amarelo.

— Volte, por onde veio, e diga ao “seu” Artur que eu também tenho um papo amarelo. Com uma diferença muito grande.

— Que diferença?

— O meu está acostumado com meu dedo.

As canas do Cunha cresceram, frondosas, e nunca mais se ouviu falar em porcos fuçando pelas redondezas. “Seu” Artur entregou o sítio e foi arrendar outro mais distante.