Obscuro ( continuação )

Obscuro

Mais uma noite longa.

Insone, caminho pela casa escura tateando paredes carcomidas pelo tempo, sigo o cheiro de fumaça que vem do fogão a lenha da cozinha... Tenho fome.

O nó na garganta continua sufocando a respiração de minha alma, aquele cômodo esfumaçado não era grande suficiente para abrigar a minha dor. Esperaria o sol nascer, a luz do dia devolveria um pouco de calor ao meu vazio. Agora tudo o que podia fazer era reler sua cartas e olhar suas fotos.

Os dias eram sempre ensolarados, a luz emanava dos meus poros e transcendia meus poemas e minhas rimas, escrever era ato natural, as palavras surgiam como água de chuva que molha a folha e mata a sede da floresta, inundava os rios e trazia vida de dentro de mim.

Agora o escuro banhado apenas pela luz do velho lampião a querosene é minha companhia junto com poemas amarelos e fotos em branco e preto.

Um café forte, os primeiros raios de sol...

Vida...

Ainda há vida.

E pensar que tudo começou com um olhar, uma simples troca de olhares, entre dois seres perdidos, perambulando pela floresta de concreto que se formava na São Paulo dos anos 50. Eu revolucionário para a época corria pelas avenidas com minha lambreta Piaggio de 200 cilindradas, sem capacete, de óculos escuros, jaqueta de couro, gel nos cabelos e toda atitude que pudesse confrontar a sociedade.

Foi num desses passeios que encontrei Carola, menina rica, da alta sociedade paulistana, estava num bar da Rua Augusta quando ela passou em um Ford Tudor. Através do vidro pude ver toda a beleza daqueles olhos negros como a noite, peguei minha Piaggio e corri feito louco pela rua, o piso de paralelepípedo e os trilhos do bonde tornavam a tarefa de alcançar o carro ainda mais difícil, mas todo esforço valeu a pena, na esquina com a Avenida Paulista parei minha moto bem ao lado dela,que atrás do vidro fechado esboçou um sorriso de Monalisa.

Demorou pouco tempo para que ela estivesse fazendo o mesmo trajeto em minha garupa. Exploramos o mundo com aquela lambreta.

Essa foto é a que mais gosto.

Ela estava linda, sentada a beira do mar de Santos, ao fundo a imensidão azul, pincelada de gaivotas, mesmo não havendo cores, me lembro daquele por do sol todos os dias de minha vida.

O querosene está acabando.

O dia vai clarear.