Tina da Cauê

Diziam de tinha poderes telepáticos e que sabia ler os pensamentos. Na verdade aprendera apenas a fazer inferências quando escutava as conversas, via os trejeitos no rosto dos interlocutores e os associava ao que diziam, escondiam, afirmavam ou negavam. A história dos seus dons começou, portanto, muito cedo mas só os usou quando, na grande fome do Lubango, durante a última guerra, ela perdeu os pais e o marido. Ficou só, sem gado, sem lavra, sem forças que a fixassem no lugar onde nasceu e, foi andando a pé até chegar à cidade. Ela própria construiu a cubata redonda, de terra batida e coberta a capim. Morava perto do rio e nele bebia, tomava banho e lavava os panos. Tudo o que tinha lhe davam e passou a fazer-se pagar pelos conselhos, descobertas e opiniões. A população negra era medrosa e crédula e os colonos ou acreditavam ou recorriam à influência que ela poderia ter no desvendar dos mistérios. Assisti a um dos rituais. Desaparecera o sapato direito da Lita e, virada a casa, o quintal e a horta sem que aparecesse, a Tina da Cauê, a pedido do pessoal, foi convocada. Chegou pausada e gorda, carapinha em desalinho, rosto untado de manteiga e leite coalhado. Pediu cinza e explicou que nela estava a morte do que foi vida e calor. Todos tínhamos de entrar na morte para saber mais sobre as voltas do mistério e, consequentemente, todos nos esfregámos com cinza. Riamo-nos por dentro vendo o pavor alojar-se nos olhos dos assistentes. Tina da Cauê, sem saber por que a chamavam iniciou uma ladainha em palavras no dialeto local:- Sumiu um boi? Perguntava. E nós, em coro, respondíamos que não. Roubaram comida? Mobilia? Roupa? E as respostas mudavam o tom da melopeia. Depois de muito tempo e de dezenas de tentativas ela perguntou: - foi sapato? Sim, foi sapato. Tina da Cauê limpou o suor do pescoço e deixou o do rosto abrir caminhos na cinza que se grudara ao unguento que impregnava a pele. Foi mais que um sapato? Quis saber - Não, dissemos. Depois disso, já segura e poderosa, declarou: Não havendo coxos da idade da menina dona do sapato ele não foi roubado. Vejo-o caído em algum lugar e sei que vai ser visto quando ninguém mais o procurar, concluiu sábia e certeira. Recebeu dinheiro, peixe seco e farinha de milho e desceu para o seu território sem se despedir. O sapato novo da Lita apareceu no banco do carro da família, dois dias depois.

Fim

Ao meu irmão Hugo Ricardo

Edgardo Xavier
Enviado por Edgardo Xavier em 12/01/2014
Reeditado em 29/04/2015
Código do texto: T4646968
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