Filho de Pai Incógnito
Mariana arreou a cesta à porta da casa, entrou e procurou a cama estreita para gemer o resto das dores. A criança, perfeita com a graça de Deus, já berrava quando Carmita entrou para fazer o parto. Limitou-se a cortar o cordão umbilical, enrolar a criança num lençol velho e por ordem no quarto. Saiu para fazer, nas brasas entretanto espevitadas, a canja com as miudezas e patas de galinha à moda da ilha de Santo Antão. Lá dentro, aliviada, a mãe limpava o suor do rosto e admirava o seu oitavo filho. Tantos foram os que já parira assim, isolada e sozinha, sofrendo por cada um a mesma agonia, o terror de se rasgar inteira, de se desfazer em fezes e sangue, de não conseguir sair daquele aperto de contrações e angústias cíclicas. Agora, serena, já nem se lembrava disso. Pouco depois, Anildo chegou da venda para conhecer o filho e ver a mulher, uma das muitas a quem, nas voltas da vida, entre o cultivo da cana e a venda do grogue, emprenhava. Voltou a sair para dar a novidade à Joaquina e à mãe de Mariana e passar pelo Bar onde já havia gente a beber à saúde do menino. Amigos, conhecidos, parentes, vizinhos afinal essa teia humana tão natural e típica de Santo Antão, comemorou o nascimento nos oito dias que precederam o seu registo e, por maioria de razão, no próprio dia em que o pai do rebento, acompanhado por familiares e padrinhos, entrou toldado na repartição oficial. Como se chamará a criança, perguntou o oficial do registo, também ele a sentir o álcool a nublar-lhe a vista. – Sabe, compadre, que não me recordo o que pediu a mãe! Não sei se Toneco Valente ou Antão? Mas, para não perder tempo, fica Toneco Valente que o nome do santo é falta de respeito, decidiu. – Isso não pode ser, Anildo, Toneco é diminutivo de António e Valente ninguém merece, não é? Se você aceitar, ele fica Simão Santos, como eu que sou o padrinho principal. – Não senhor, nada disso, retorquiu o Torquato. Aqui os padrinhos são iguais em importância e eu gosto do nome Morelindo. Pronto, ninguém vai discutir neste dia de tanta alegria, cada um vai escrever o nome que quer e colocar neste chapéu. Anildo, como pai, retira um papel e ficará o nome que a sorte definir. Está bem assim? Depois de concordarem todos, os papelinhos foram misturados e Anildo retirou o papel onde, escrito com grafia tremida, estava o nome com que o menino ficou: Torangildo dos Santos apesar do sobrenome do pai ser Tavares. Mariana bem perguntou a Anildo pelo nome do menino uma vez que soube que não o registaram como pedira mas, de tão animado pelo grogue e cerveja, ele só balbuciava: é qualquer coisa Santos, mulher, isso agora não importa. Voltarei lá amanhã e ficaremos a saber quando vier a certidão. Torangildo foi considerado por todos como uma designação vergonhosa e o menino, filho do Tavares, passou a ser conhecido por santinhos. Logo que deitou corpo e emigrou para França, passou a ser Santos. No passaporte, desgostoso pelo descaso do pai, só aceitou o nome da mãe, Mariana Gomes. Santos, oficialmente, é filho de pai incógnito mas irmão de todos os Tavares da Ilha.
Fim