Uma história triste
A mulher acordava bem cedo todos os dias, inclusive aos domingos. Passava o café ralo, quando tinha pó, quando não, e isso era bem frequente, colhia algumas folhas na laranjeira que ela mesma plantara perto do portão e as fervia para o chá. Acordava a filha mais velha que ia esfregando os olhos de sono até a venda mais próxima e comprava dois pães, um para si e o outro para a irmazinha caçula. A menina nunca pensava no fato de não haver o terceiro pão, nem notava que a mãe não comia com elas.
Era o momento bom do dia, o momento em que ela amava a mãe.
A mulher vestia a menina mais nova, lhe dava o pão sem manteiga, nunca havia manteiga, e ia se vestir apressada. Era nesse momento em que dava atenção a outra filha: --Vista-se rápido! Vamos nos atrasar! Quando acabar a aula venha direto para casa com sua irmã, não solte a mão dela por todo o caminho, ouviu bem? A menina balançava a cabeça afirmativamente enquanto colocava os sapatos. -- Faça o almoço de vcs, eu trouxe um bife, faça-o com arroz e coma com a pequena. Quando chegar vou olhar se você fez!
Todos os dias era a mesma história, as mesmas recomendações, mas a garota ouvia com atenção, pois no momento bom do dia aquela mulher era a sua mãe, se preocupava com elas e ela a amava. Ela não se perguntava sobre aquele bife que mãe todos os dias trazia do restaurante onde trabalhava como cozinheira e nem passava por sua cabecinha de dez anos que aquela era a carne que a mulher deveria comer no almoço mas que discretamente enrolava em um pedaço de plástico e levava para casa. A mãe por sua vez nem sonhava que aquele suculento filé fosse parar quase sempre na barriga do cachorro vira-latas da família. A verdade é que voltando da escola as meninas só pensavam em brincar, crianças que eram! Ao invés de perderem tempo fazendo comida, elas vendiam duas das muitas garrafas que haviam no fundo do quintal e compravam mais pães, as vezes um doce --havia uma vizinha que fazia doces de leite para vender e quando os cortava em pedaços uniformes ia retirando os retalhos que sobravam das bordas e os vendia bem barato para as crianças do bairro. Quase sempre era esse o almoço das meninas. Mas a mulher não sabia disso e prosseguia em suas recomendações: --Façam o dever de casa e arrumem tudo, depois podem brincar no quintal, mas não saiam para a rua! As meninas assentiam a tudo. Com a pequena no colo para andar mais rápido e a maior correndo do lado iam pela rua abaixo a mulher e suas duas filhas. Era uma boa mãe, e a filha mais velha a amava naquele momento.
Aquela senhora ainda jovem, por volta de trinta e cinco anos, levava uma vida bem difícil. Se divorciara do marido quando a menina mais velha tinha apenas um aninho de idade. Alguns anos depois tivera a outra filha, fruto de mais um relacionamento frustrado. Trabalhava de segunda a segunda de sete da manhã as sete da noite por um salário de fome com o qual mal conseguia comprar o arroz e pão para as filhas e mantê-las na escola. Corria em volta de um enorme fogão a lenha loucamente o dia todo, sem tempo para pensar em seu infortúnio.
A noite no entanto, quando ia para casa, exausta, aí sim ela pensava e não suportava aquele destino. A mulher forte e corajosa a abandonava e ela mal conseguia esperar chegar até o casebre de dois cômodos que dividia com as criança. Apressava o passo, os pensamentos torturantes gritando em seus ouvidos cansados!Precisava calá-los. Ao entrar não perguntava para as filhas como havia sido o dia, se haviam almoçado, feito dever, parecia mal vê-las. Seu olhar fugia ao da menina mais velha, parecia evitá-la. Vasculhava frenética a bolsa em busca do dinheiro que compraria o silêncio em sua cabeça. Que anestesiaria o sofrimento. Sem dizer uma palavra o entregava a menina de dez anos que já sabia o que fazer com ele. Ela ia pela rua devagar, cabisbaixa, o lábio inferior trêmulo, como se tentasse retardar o rumo dos acontecimentos, mas mesmo assim não tardava chegar a mesma vendinha onde pela manhã comprara os pães. Seu olhar é tão triste nesse momento que o dono da mercearia sente a garganta travar. Ele tampouco precisa perguntar o que ela quer quando recebe aquela nota amassada, como se a criança a tivesse apertado com tanta força só para ver se fazia com que ela e o que ela representava sumisse em sua mãozinha suada. Ele vai até a prateleira do fundo e pega uma garrafa de cachaça (ele tem sempre o cuidado de escolher a garrafa escura, pois sabe que a garota as vende depois como se fossem de cerveja) embrulha em um jornal e sem olhar nos olhos da menina a entrega em silêncio. Parece mesmo se sentir culpado por fornecer o que faz aqueles olhinhos, que não deviam conhecer nada daquilo, o fitarem tão tristes.
Em casa a mulher ávida arranca a garrafa de suas mão e se afasta com ela e um copo. A cada gole a mãe amada vai desaparecendo e mesmo assim a menina reza para que ela beba rápido e que perca logo a consciência, ainda não são oito horas da noite e com sorte as dez já não haverá uma única gota na garrafa o problema é que não haverá tampouco uma mãe para aquelas garotinhas. Elas sabem que devem manter distância. Nas noites de muita sorte a mulher apaga rapidamente ali mesmo onde está sentada, mas essas noites são raras. É o momento ruim do dia! A menina a odeia então! Ela odeia do fundo sua alma aquela pessoa de fala arrastada e mão pesada que toma o lugar da mãe...
Puxa a irmazinha para o canto mais afastado da cama que toda noite têm que dividir com aquela mulher mal cheirosa. E colada a parede tenta se fazer invisível para não se tornar o alvo mais fácil da raiva surda que parece dominar a mulher.
Ela sabe que quanto menos barulho fizer mais fácil será que o monstro adormeça e que o quanto antes elas próprias conseguirem dormir, mais rápido se livram daquilo. E sabe, sem duvida nenhuma, que a aurora trará de volta a mãe amada.
Infelizmente sabe também que as sombras da noite a levarão embora outra vez.