Alferes Miliciano

Fiquei muito tempo no Hospital Militar. Primeiro pela doença e, depois, pela burocracia. Quando pude tornar-me autónomo passei a ajudar os doentes das camas vizinhas. Dava-lhes as refeições, punha-lhes a arrastadeira, acudia chamando o médico ou a enfermeira sempre que se fazia necessário. No resto do tempo corria o Hospital quer fosse para conversar com o pessoal de enfermagem quer para jogar às cartas com os soldados doentes. Apartados estavam os da Psiquiatria, os Infecto-contagiosos e, em áreas absolutamente vedadas, eram tratados os combatentes acidentados na guerra mantida nos territórios de África. Morria de curiosidade para saber o que havia para lá da porta que repetia, em letras garrafais, a proibição de entrar e, um dia, com o coração em tumulto, entrei. Para o corredor davam as portas dos quartos. Espreitei para o interior do primeiro e mal consegui perceber as camas por estarem as portadas fechadas e haver apenas uma luz de silêncio. Alguns gemidos foi tudo o que ouvi denunciando a existência de gente acamada. Avancei para o segundo quarto e vi-te numa rede suspensa do teto, como uma trouxa sanguinolenta. Gemias. Quando me aproximei para te ver e te falar verifiquei que não tinhas braços, nem pernas e vias muito mal pelo único olho que tinhas.- Quem está aí? Perguntaste, mas já eu, a tremer, suado e ofegante, corria até ao meu quarto onde, metido na cama, chorei muito tempo. Nesse mesmo dia, confessei a minha ousadia à enfermeira de serviço e pressionei-a a solicitar ao Diretor do Hospital licença para poder circular por lá e falar com os doentes. Impossível, disseram. Por isso voltei correndo riscos de punição severa. Estudei os horários deles e os tempos em que, sem ninguém, ficavas sozinho. Depois dei-me a conhecer, fiz-te companhia, li o que querias que lesse, escutei-te. Tinhas o rosto marcado de cicatrizes negras e choravas muitas vezes sobretudo quando falavas dela. Sem se despedir, Susana saiu da tua vida e não voltou. Os teus sonhos acabaram com o rebentamento da granada. Disseste que te sentias um cacho de bananas pendurado a maior parte do tempo mas disseste também que, comigo por perto, percebias que a falta das pernas e dos braços não retiravam nada à tua capacidade de sentir e de amar. Assim passaram vários meses até que, um dia, já com pernas e braços artificiais, a conheceste. Ela aceitou-te como eras e tu confessaste-me que gostavas da voz, da suavidade das mãos dela no resto do corpo, que, com ela, recuperavas o sonho de ter filhos. Fui teu padrinho de casamento e ainda te acompanho, de longe. Já tens dois filhos. A última vez que te ouvi ao telefone disseste: tive sorte. Ela gosta de mim incompleto.

Edgardo Xavier
Enviado por Edgardo Xavier em 30/12/2013
Reeditado em 30/12/2013
Código do texto: T4630394
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