A casa em Preto e Branco

Beleza, hoje o Senna vai largar na poli – tomara que dê uma volta de frente de novo – pensou, enquanto se sentava na poltrona em frente à televisão esperando a corrida começar. Domingão, café da manhã já tomado, agora a corrida e depois ir encontrar com o povo na praça. Depois levar a família pra comer peixe, e depois, ficar de bobeira o resto do dia. O planejamento mais ou menos inconsciente foi interrompido por um aperto no saco ao sentar na poltrona. Estava engordando e a bunda crescendo, e a cueca ia ficando apertada. Puxou a cueca para baixo e pensou consigo mesmo: “É, eu to ficando muito sacudo”.

A televisão ligada, já passando flashs do autódromo: mais uns quinze minutos e a corrida começava. Beleza, depois...

PAIEEEEEE.

A filhinha o chamava no terreiro no seu jeito singelo.

PAIEEEEEEE.

Não era nada demais pela voz, só querendo alguma coisa. Vamos lá rapidinho. - Oi Filhinha (como é que pode uma menininha tão pequenininha gritar tão alto)?

Pai, minha boneca caiu lá em cima.

Onde?

Lá no muro, nas folhas.

Ali?

É.

Tá! Vou pegar pra você.

Sabia que não teria sossego até pegar a boneca. Então, rapidinho, era pegar a escada, subir no muro e achar a boneca na trepadeira que acompanhava o muro externo e entrava pela sua casa e pelas casas que davam fundo para a linha do trem.

Escada... está aqui... vamos lá, muro... folhas... cadê essa praga de boneca?

Onde caiu minha filha?

Ali.

Aqui?

É.

Mas não está aqui. Ah minha filha, como é que a boneca caiu aqui em cima? Você jogou ela aqui?

Não, ela caiu ai ué.

Ah, depois eu olho.

Ah não pai, olha pra mim. Eu quero minha bonecaaaaaaaaaaaaaa!!!!!!

Como ia começar a crise de choro e gritaria de novo. Teve que resolver: dar na filha uns tapas (e a gritaria e o choro podiam piorar, até ele ter que espancar a filha até ela desmaiar... hummmm, mal negócio) ou achar a boneca. Bom, então, relaxa e procura.

“Oi vizinho” a voz vinha do outro lado do muro.

Oi Seu Salib, tudo bom?

Tudo. Não vai ver a corrida não?

Vou. É que a boneca da minha menina caiu aqui na trepadeira. Ela não caiu ai embaixo no seu terreiro não?

Seu Salib deu uma olhada em todos os poucos lugares de seu terreiro, e com uma cara meia de desânimo por não poder ajudar o vizinho respondeu: Não, não está aqui não.

E o senhor Seu Salib, não vai ver a corrida?

Vou sim, só estou colocando essas folhas de parreira de molho aqui fora para elas amaciarem, que é para eu fazer charuto mais tarde.

E o restaurante, vai bem?

Vai ótimo, Graças a Deus.

Tem dia que sinto o cheiro daqui de casa e dá vontade de fazer igual aos micos que o senhor falou que estavam entrando ai e pegar uns desses charutos também.

Eles continuam aparecendo?

De vez em quando, eles vêm por essas árvores ai de fora, e nem dá pra saber de onde eles estão saindo. Mas é só de vez em quando. E o pior é a barulheira que eles fazem. Mas são uns bichinhos inteligentes, pois mesmo fazendo um barulho danado, quando eu chego aqui quase nunca vejo nenhum. Aliás, nem eles nem a comida, porque os danados carregam tudo. Só vi alguns deles umas duas vezes, e sei que são eles mais pelo barulho.

Você descobriu e onde eles estão vindo?

Não. Perguntei para todo mundo aqui perto e ninguém sabe. A maioria já viu eles passando também, ou ouviu, mas ninguém sabe de onde eles vêm. Pensei que fosse das árvores, mas conversei com um amigo da rede ferroviária e ele falou que essas árvores não são árvore em que macaco fica. Não dão nenhuma fruta ou qualquer coisa que eles comam. Só estão ai para evitar que o pó da ferrovia entre nas casas. E dei uma olhada outro dia também. Não tinha macaco nenhum em árvore nenhuma dessas.

Se as árvores estão ai só para evitar que o pó da ferrovia entre então não estão trabalhando direito, né Seu Salib – E riu com um pouco de ironia, um pouco de resignação.

É mas pelo menos ajuda um pouco. Aqui, deixa eu entrar que parece que já vai começar, você não vai?

Vou. Só achar essa boneca aqui antes.

Até então.

Até Seu Salib.

Seu Salib entrou na casa. Todos tinham entrado nas casas. Era a corrida! Olhou em volta procurando a boneca e percebeu que como Seu Salib tinha dito as árvores iam mesmo acompanhando o muro seguindo os trilos da Rede Ferroviária até fazer a curva, bem lá pra frente, acompanhando a fileira de casas, construídas pela fábrica seguindo de um lado, e com a fábrica de outro lado, com se fossem dois lados de um rio, o lado das casas e o lado da fábrica.

Atrás de todas as casas casa os fios da rede elétrica, depois a linha do trem e do outro lado da linha, a fábrica.

Nunca tinha reparado a fábrica daquela perspectiva, em pé sobre o muro. Embora o muro da fábrica fosse muito alto, ocultando a maior parte, dava pra ver as estruturas mais altas. Do chão só se via muro. Dava para ver as pontes rolantes, as vigas que sustentavam o telhado e a cobertura de telhas de metal. Nunca as tinha visto de fora da fábrica, daquela maneira sem ser olhada por baixo. Na verdade não se lembrava de nunca ter reparado nelas, mesmo de dentro da fábrica, mas com certeza as tinha visto, afinal, estavam lá todos os dias. Mas dali de onde ele estava dava para ter uma visão da fabrica por fora, de cima de seu muro.

Teve uma época que ele queria ser operador da ponte rolante. O salário era melhor, e ficava em um lugar seguro dentro da fábrica. Se alguma coisa caísse, seria da ponte para baixo. Nem tinha tanto risco por causa de produtos químicos, pois a ponte era fechada. É, mas não tinha dado certo. Mas ele estava trabalhando, o emprego era estável, pagava as contas. E tinha os amigos e a camaradagem entre os operários da fábrica. Tinha o clube, o plano de saúde, o sindicato. É, ele tinha uma casa, e podia cuidar da família. E dali do seu muro ele podia ver a fábrica de um jeito diferente. A fábrica entrava pela sua retina e descia, para o estômago, engolida em seco, como o choro que ele aprendera a engolir tão cedo.

O que que é isso?

Isso é come calado.

Era desde cedo que se aprendia. Desde o momento que se aprendia a perguntar. Mas a fábrica estava lá. E ele via não só o muro da fábrica, ou a via por debaixo, por dentro. Ele a via de fora, e antes dela o muro, e antes do muro os trilhos da ferrovia, antes dos trilhos os postes e a fiação elétrica. Que iam à direita, até a curva, lá longe, acompanhada pelas casas e pelas árvores. Árvores que ele não sabia o nome. Não davam nenhuma fruta, nem nenhuma flor. Só árvores: raízes, troncos, galhos e folhas. Folhas verdes opacas, sujas pela fuligem das locomotivas e das chaminés da fábrica, apagadas pelo pó. Como a árvore em frente à sua casa. E a trepadeira que vinha do lado de fora, uma pequena árvore também, só que mais cansada, escorada no seu muro, e no de muro de Seu Salib. Entrava nas duas casas, e eram deixas lá. Afinal, davam um verde para a casa, davam uma vida para o muro de placas de concreto pré-fabricadas. Ele podia sentir o cheiro daquela fuligem a cada respiração. Aquele cheiro quase imperceptível, porque estava sempre ali.

Ele respirava e olhava o que estava por trás de seu muro, daquela nova posição como observador. Olhava, ouvia e respirava aquela nova paisagem. As casas que iam até a curva distante e continuavam, como todas as outras casas, com o ferrovia e as árvores, com os postes e os fios de eletricidade, e sempre a fábrica. Via a curva distante e olhou para o outro lado. Do lado esquerdo. A casa de Seu Salib, com o terreiro com a grande mesa de cozinhar e os cheiros de especiarias da cozinha árabe. A casa tão semelhante a sua, mas diferente, com o pé de romã e a parreira, com a grande mesa para cozinhar. A trepadeira entrava por sua casa e dela para a casa de Seu Salib, e outras trepadeiras mais a frente no seu muro. Subiam pelas árvores e entravam pelo muro, algumas subiam na fiação, e depois...

Depois... lá onde não deveria haver nada, só um terreno vazio... lá, havia agora uma casa em preto e branco.

Em preto, branco e nos diversos tons de cinza, onde o preto e o branco coexistem, deixando sempre uma incerteza, criando somente contornos de sombra e luz.

E porque lá, onde não havia nada antes, havia agora uma casa em preto e branco, para lá foi, como um sentimento que sai do coração ao encontrar uma palavra nova, tão cheia de sentidos, tão cheia de ... Foi pelo muro, pelas árvores e pelos fios, que levavam energia, entre os trilhos e os muros das casas.

Foi e entrou pelo terreiro da casa, pelo terreiro em preto e branco. Em tudo semelhante a todos os outros, com uma goiabeira e um limoeiro, e as plantas e flores, em matizes cinzentos. Lá entravam as trepadeiras, e o muro separava a casa das árvores, dos trilhos do trem, dos fios de energia, do muro da fábrica, da fábrica, e das outras casas vizinhas. Mas de lá, o que se via de fora, era através do cinza, do preto e branco. O mesmo muro, pré-fabricado, com as trepadeiras e os fios que acompanhavam o muro do lado de fora, e o alto muro que deixava ver o apenas o telhado da fábrica.

O vento soprava e os cheiros das plantas eram também em tudo semelhantes, mas ... na atmosfera em preto e branco. A porta da casa que dava para o terreiro, semiaberta. A porta em preto e branco que dava para o interior da casa. O céu, através do cinza ainda era azul. Um azul através do cinza. A porta que ia do terreiro para dentro da casa, semiaberta, cinza, deixava antever somente sombras, entre o claro e o escuro que era a casa em preto e branco. Deixava antever tão somente os contornos.

Tocou a porta com suas mãos, suas mãos ainda tinham cor, mas ele só as via através do cinza. Através do cinza empurrou a porta, que foi-se abrindo como qualquer outra porta, mostrando a casa tão igual à todas as outras, construídas todas iguais. A decoração, simples, como a de todas as casas, não era mais simples pela ausência das cores. Os tons de cinza já estavam lá, nas cores simples. Entrava pela cozinha, que tinha uma porta que dava para o terreiro, como nas outras casas, construídas...

Era como todas as casas. Construídas iguais, e decoradas sem grandes diferenças. Mas... não devia estar lá. Aquele era um espaço vazio. Mas agora tinha uma casa em preto e branco. Os cheiros da casa estavam lá, a atmosfera acolhedora das casas simples. Através do cinza ele via a casa, e seguia pelos cômodos, poucos, e simples da casa. Os móveis, as cortinas, os eletrodomésticos, estavam lá, como desde sempre estavam em todas as casas, em todas as casas... E respirava o cinza da casa para dentro de si, como qualquer outro ar. Com seus cheiros, e com a brisa que vinha do terreiro pela porta aberta.

A sala. A porta da sala que dava para a rua. Igual a todas as casas. Uma porta, da sala para dentro do resto da casa, outra para fora, e uma janela para o terreiro. Via-se o azul do céu através do cinza, através da janela. Os móveis da sala, como o de todas as casas. A porta para a rua. Continuar... a porta da rua... chegar à rua... como uma sentimento que sai do coração... ir em frente para a rua, para a mesma rua que todas as portas das casas levavam... para a rua depois da casa em preto e branco, para a rua do outro lado, em frente às outras casas, para a rua sem muros... para a rua, como um sentimento...

O baque surdo o jogou no chão, contra a parede. As costas doíam, os rosnados grossos, chutou, esperneou contra o cinza e se virou e viu de frente. E viu estarrecido...

Os lobos cinzentos.

Ele não passara despercebido ao entrar ali. Silenciosa, mas inexoravelmente, os donos da casa vieram ao encontro do invasor, para defenderem seu território.

Com os chutes os lobos recuaram um pouco, mas o cercaram e o encurralaram num canto da sala, e agora de frente ele os via cara a cara, os quatro lobos cinzentos, o cercando e avançando bem devagar, atentos a qualquer pequeno movimento, que era logo respondido com um reposicionamento dos lobos que o impediam de fugir, e procuravam uma brecha no meio dos chutes.

Os chutes eram em vão. Cansado, paralisado de medo, ele viu um dos lobos avançarem através do cinza, com olhar atento à presa que ele se tornara. Um avançou mais e... como se encontrasse uma... parou. Ele sentia a respiração quente do atacante. O Lobo que avançara mais parou. E numa expressão de loucura impedia os outros de avançarem também, virava para trás e para os lados e os mordia, e logo depois olhava pra frente e ia avançar mas...

Não avançava, não fugia, não deixava os outros seguirem... como um sentimento que quisesse deixar um coração mas não encontrasse a palavra. Mas agora, um dos lobos havia parado, paralisado, não seguindo em frente em devorar o invasor. E em seus olhos, através do cinza, havia agora o reflexo colorido de sua presa.

O lobo cinzento de olhos coloridos. Os outros lobos se afastaram. Entreolharam-se, na conclusão de quem nunca hesitou. Atacaram juntos o obstáculo à presa. A luta durou pouco, com feridas em todos, mas no fim, a alcatéia cinza fez valer a força do seu maior número. O lobo de olhos coloridos caiu. Através do cinza, seu sangue escorreu vermelho.

E uivou, com sua última força, um uivo, um urro. Os outros lobos se voltavam para a presa, já esquecidos das feridas, como se elas nunca houvessem existido, nem a luta, nem o outro lobo. Só havia a presa.

Mas o uivo do lobo de olhos coloridos encontrou eco em algo fora da casa. Uma resposta. O urro dominou os ouvidos e atravessou a casa, atravessou o cinza e os lobos... o urro.

A janela. O azul através do cinza. Os lobos hesitaram com o urro, mas ele viu a janela. E não hesitou. Saltou da casa para o terreiro.

O mesmo terreiro de antes, mas ele estava fugindo agora. Atravessou o cinza rumo ao muro, onde subiu através da trepadeira, e seguiu pelo muro, pelos fios, pelas arvores, e os lobos, passado o susto, já vindo em seu encalço subiam também e o seguiam por seus caminhos.

Fugia por onde tinha vindo, e viu as cores para além do cinza. Foi em direção às cores. Atrás os lobos, a direita fábrica, à frente às cores e a esquerda... na trepadeira do muro que dividia a casa em preto em branco com a casa de Seu Salib... a boneca da filha.

Os lobos vinham, o fio e as árvores e o muro ameaçando se romper com ele. Fugir dos lobos, pegar a boneca, voltar para as cores...

Como se houvesse alguma opção.

Sanyo
Enviado por Sanyo em 26/12/2013
Reeditado em 28/08/2018
Código do texto: T4625559
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