O Clã

Érinn. Uma era em que as contagens de tempo eram diferentes. Nas terras do noroeste, o inverno já avançava forte. Os ventos rugiam do lado de fora, vindos do mar, onde as ondas se avolumavam. A neve já havia caído, e geadas eram frequentes. O Samhain já havia passado há mais de um mês, agora as famílias se recolhiam dentro de suas casas, com seus clãs e até mesmo os seus animais, enquanto os espíritos corriam pela terra gélida e o Rei Fionnbhearra cavalgava buscando os descuidados que se aventuravam pelas noites de frio e vento. Os Fianna se juntaram em um pequeno povoado próximo a Antrim. O inverno havia chegado enquanto eles lutavam com os lochlanners, e o inverno seria passado ali no norte mesmo. Alguns dos homens eram nativos da região, e estavam com suas famílias, dividindo o espaço com outros membros do bando guerreiro. Assim era na casa de Ruadhach.

A casa estava escura apesar da fogueira acesa no meio do salão. O chefe da família estava comendo junto aos seus companheiros de batalha próximo a ela. Ao lado, dois de seus jovens filhos brigavam. As crianças de cabelos ruivos jogavam uma à outra no chão, trocando socos. O pai, guerreiro por natureza, vocação e profissão, normalmente não se incomodaria com essa demonstração de força e coragem de seus dois rebentos, mas os insultos que eles proferiam um contra o outro fizeram com que ele se levantasse. Uma luta podia ser apenas uma brincadeira, um sinal de crescimento, podia ter mil razões. Mas irmãos nunca podiam ofender a honra um do outro, mesmo sendo crianças. Ruadhach pegou cada um deles pelos cabelos longos e os jogou no canto da casa.

- Muito bem. Não quero saber quem começou. Vocês irão pedir desculpas um ao outro agora ou ambos vão dormir no lado sul, junto com os animais. – os dois meninos o encararam emburrados; de fato, eram filhos dele, tinham problemas com autoridade, como ele tinha tido na idade deles. Então, ele se sentou de frente para eles – vocês são irmãos. São da mesma família, vem da mesma mãe, e ambos vieram da minha semente. Ambos são meus protegidos, e ambos cuidarão de sua mãe quando eu me for. Ninguém é mais importante do que aqueles de sua família. Eles são aqueles que os conhecem desde a infância. Sua família os viu nascer, os viu crescer, e aprendeu a ama-los mesmo quando agem como dois fedelhos ingratos. Vocês são irmãos, viram um ao outro crescendo e vão ver mais ainda. Brincam juntos, brigam juntos, mas estão sempre juntos. Eu tive os mesmos problemas com meus irmãos quando éramos mais novos, mas sempre estivemos ao lado um do outro quando precisamos. Somos todos da mesma família, da mesma derbhfine, e se não protegermos um ao outro, quem protegerá? A honra de um é a honra do outro, por isso vocês irão se desculpar um com outro, porque ao desonrar seu irmão, desonra a própria família, e ao insultar seu irmão, insulta a si mesmo.

Os jovens ficaram cabisbaixos. Sabiam que o pai fazia mais que repreende-los, sabiam que ele os ensinava uma importante lição para a vida: a derbhfine, a “família verdadeira” era a unidade suprema entre seu povo, estava acima do homem sozinho, e estava acima da própria tuath: o que um homem sozinho podia fazer de diferença em um mundo onde todos dependem uns dos outros? E que tuath respeitaria um membro de uma família desonrada? Mas o garoto mais velho ainda levantou a cabeça uma vez mais:

-Pai, você fala de mim e de Aengus, e eu entendo. Mas e quanto a Cernach? Ele não é do nosso sangue, não é nem de nossa tribo, é um enjeitado que vocês aceitaram em nossa casa e tratam como filho!! Por que?!

-Nem toda a família é de sangue, garoto. Claro que consideramos nossos parentes de sangue acima de estranhos, mas algumas vezes acolhemos alguns de outras famílias como se fossem da nossa. Quando apadrinhamos um estranho, ele passa a ser um dos nossos, um irmão e um convidado honrado, para aprender os nossos modos e nossa arte. Cernach não é dos nossos, não nasceu de nosso sangue, mas nossa família decidiu que ele será um dos seus irmãos, e assim será até o fim de sua vida, ou até que ele decida voltar para sua família de sangue. Qualquer que seja o caso, ele está aqui, aprendendo os nossos modos melhor do que vocês, e se tornando um jovem honrado com o qual vocês deveriam aprender. Ele não traz desonra à nossa família, e devemos ser gratos a ele por isso.

O mais velho continuava encarando o pai, com olhar de curiosidade:

-Foi por isso que o tio Ermón foi mandado embora? Ele não trazia honra para a nossa família?

O pai baixou a cabeça, com a expressão séria; mas continuou:

-Ermón foi uma vergonha para todos nós. Infelizmente, nem todos são dignos de honrar aos nossos ancestrais. Alguns não tem a força de caráter para ser corretos. Seu tio roubou e mentiu; ele foi traiçoeiro por toda a vida. Ele trazia vergonha a nossa família. Por mais de uma vez, tentamos corrigir os seus erros, mas ele optou por se manter no modo de vida que havia escolhido. Por mais que tentássemos, ele preferiu isso. O que deveríamos fazer? Deixar que ele desonrasse o nome de nossos ancestrais? Deixar que a tribo pensasse que alguém que foi criado pelo meu pai poderia simplesmente agir daquela forma? Ele não era da nossa família, não era mais, mesmo sendo do nosso sangue; ele esqueceu os modos de nosso povo, e por isso teve de deixa-lo. Do mesmo jeito que aceitamos como nossos aqueles que nos trazem honra, não podemos aceitar aqueles que nos desonram. Ele teve todas as chances para mudar a si mesmo. A escolha foi dele mesmo, no final.

O mais velho se calou. Mas foi o momento do mais novo falar:

-Papai, o senhor fala tanto da família, mas você cuida dos seus amigos, e luta com eles também. Eles não são seus filhos nem seus irmãos, então por que faz isso?

O homem sorriu:

-Porque são amigos, meu filho. Eles são aqueles que eu optei por estar junto. Fui eu que escolhi confiar neles. Fui eu que escolhi trabalhar com eles. Fui eu que escolhi lutar ao lado deles, viajar com eles e acolhe-los em minha casa, partilhando minha cerveja e comida. Por serem meus amigos, eu os ajudo, mas não espero que me ajudem, embora sei que o fariam. Por serem meus amigos, eu perdoo suas pequenas falhas, mas não espero que perdoem as minhas, embora sei que o fariam. Por serem meus amigos, eu confio neles, embora não espere que confiem em mim, embora sei que o façam. Porque escolhemos a companhia uns dos outros, e sabemos que a amizade não é descartada facilmente pelos sábios. Pessoas que são verdadeiras sabem que um amigo que nelas confiam e que merecem a confiança são eternos. Isso nós aprendemos nos Fianna. Somos diferentes, pensamos diferente, agimos diferente, e nunca estamos em total acordo. Sempre que há uma falta de um deles para com o outro, tentamos pelo menos procurar as razões pelo que aconteceu. Mas uma ofensa a um de nós é uma ofensa a todos. Nenhum de nós trai a própria índole em relação ao outro, nossa amizade é sempre constante porque é verdadeira. E é isso que nos torna fortes. Agora, levantem-se e vão brincar. E se eu ouvir uma nova ofensa de um para o outro, bato a cabeça de um na do outro.

Os dois se levantaram, se abraçaram, e foram comer ao lado da mãe. O pai estava satisfeito. Ele podia fazer parte da última geração dos Fianna, mas sabia que os ideais e os modos do seu povo ainda iriam perdurar por mais tempo. Isso bastava por agora.

Publicado originalmente em barddkunvelin.wordpress.com

Wallace William
Enviado por Wallace William em 26/12/2013
Código do texto: T4625481
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