Sobre as Distrações
Caledônia. Final do Império Romano. As ilhas britânicas estavam em convulsão. Os pictos voltavam a saquear as vilas romano-britânicas. Escotos vinham da Irlanda em ondas colonizadoras. Novas tribos de homens se assentavam no leste, e chamavam a si mesmos de saxões, jutos, anglos. Os reinos britânicos, retrocedendo ao passado pré-romano, lutavam entre si, disputando os restos de império. As legiões partiram, mas deixavam um último legado: a religião cristã, que se assentava rapidamente entre a população, aterrorizada e com ânsia de agradar sua nobreza, que por sua vez aceitava a nova cruz rapidamente, querendo igualar-se aos romanos. A fé dos druidas recuava, e os próprios sábios antigos agora eram muito raros, muitas vezes hostilizados pelo povo que outrora os seguiam.
Nos ermos da Caledônia ainda havia alguns druidas, mas eles declinavam rapidamente. As terras eram esparsas de povoados, tanto pela própria dificuldade de viver no local quanto pelos ataques constantes dos pictos. E ali, Yannet ensinava ao seu pupilo, Gwaltwent.
-Então, jovem, cante o nome das árvores sagradas da Brittania, e os respectivos motivos, de cada uma ser sagrada. Vamos, estou esperando:
O jovem, que não era mais um jovem, mas apenas mais jovem que o seu mentor, olhou para baixo, e então para cima, como se buscasse inspiração ou, pelo menos, tentasse organizar os pensamentos:
“Divino Carvalho, espírito dos Druidas,
Que sobe às alturas divinas
E nos guia à sabedoria dos céus.
Que sobrevive ao raio
E nos ensina a força e a resistência.
Que pelas eras do mundo vive
E nos ensina que a existência é eterna.
Sagrado Visco, árvore dos céus,
Que nunca toca a terra…”
O rapaz parou. Estava olhando um grupo de carroceiros que andava ao longo do morro onde estudavam. Pareciam mercadores, pessoas simples, que ao ver os dois druidas, acenaram e baixaram as cabeças em reverência. O jovem acenou de volta e recebeu um golpe do cajado de seu mestre na cabeça. Ainda no chão, ouviu:
-Eu disse para você acenar para alguém? Disse para olhar para algum lugar? Não, eu pedi para você me recitar as árvores sagradas da Brittania e você não fez nem o começo do que pedi. Se você se distrai com tanta facilidade, como vai guardar nessa cabeça o conhecimento dos antigos druidas?
O rapaz se levantou, mas manteve a cabeça baixa, envergonhado. O mais velho suspirou:
-Vamos, levante-se. A aula terminou por hoje, não adianta forçar a sua mente mais do que ela aguenta. Vamos voltar para o salão antes que fique muito tarde e perigoso.
Os dois caminharam em direção ao povoado, o mais novo seguindo o mais velho. Foram diretamente ao salão do chefe, um dos poucos crentes nos velhos Deuses, e foram servidos com pão e caldo quente. Cerveja de trigo foi trazida para eles. Yannet viu os olhares do mais jovem para a garota que os serviu, o mais jovem viu que estava sendo observado; baixou a cabeça, envergonhado:
- Me desculpe, mestre. – ele disse, com a voz fraca.
-Algum dia eu lhe disse que você precisava ser casto para ser druida, ó criatura? – ralhou Yannet.
- Não, mas a garota me distraiu, senhor. Eu me distraí de novo.
- Nós estamos estudando agora, ó filho de um carvalho? Porque só sendo filho de um carvalho para ter uma cabeça tão dura!! Nós não estamos estudando, você não é um druida ainda, então o que importa se olha para uma mulher?
O rapaz baixou mais os olhos. Yannet suspirou de novo.
- Nos velhos tempos, você seria mandado para Mona para estudar, ou talvez para Iona. Teria muito menos distrações, seu treinamento seria mais pesado, e seu mestre, mais rígido. Não estamos mais nos velhos tempos, porém, e tentamos manter a tradição viva como podemos.
- Isso quer dizer que nunca será como antes?
- Exatamente. Mas quem disse que, antes do cristianismo chegar, as coisas sempre foram iguais? Ou antes dos romanos? Nossa tradição sempre se transforma e se adapta aos novos tempos, mas ela ainda permanece a tradição dos Druidas. Nós só fazemos o melhor para mantê-la. Para fazer o meu melhor te ensinando, eu devo ser duro e te alertar contra distrações. Você está em treinamento, precisa se concentrar em aprender, e não apenas decorar, mas também em interpretar. Deve pensar sobre a lição, não apenas repeti-la. Por isso, não deve se distrair. Pelo menos não enquanto está lidando com os assuntos dos druidas. Depois, talvez, possa se distrair um pouco.
-Talvez?
-Não nego, jovem, meu desejo era terminar suas lições do dia e te enviar para um alojamento escuro, com pão e água, para pensar no que aprendeu no dia. Mas, talvez, apenas talvez, esse tenha sido um dos nossos erros. Sempre foi tão difícil se tornar druida. Os romanos tornaram isso ainda mais difícil. Hoje em dia, é tão fácil se tornar sacerdote dessa nova religião. Tudo o que eles fazem é repetir as palavras escritas em um livro. E alguns deles nem mesmo sabem ler!!! – Yannet tomou um gole de cerveja e se encolheu; de repente, parecia bem mais velho – talvez, nos nossos tempos, poucos estejam preparados para ser druidas, como antes…
-Mestre Yannet, você está dizendo que estamos acabados? – perguntou o jovem, cuidadosamente. A sua primeira resposta foi um golpe de cajado no nariz.
-Eu disse isso em algum momento, rapaz? Óbvio que não!!! – o velho se postou de pé, enquanto as pessoas riam do jovem aprendiz caído – O que estou dizendo é que, quando você estiver sendo um druida, seja um druida!!! Não se distraía, não negligencie o conhecimento que lhe é passado, pense!!! – então, o velho esticou o cajado, ajudando o mais jovem a se levantar – Mas também estou dizendo para relaxar um pouco quando não estiver estudando, oficializando cerimônias, ou aconselhando alguém. Isso não o fará o menos druida, e o tornará mais próximo das pessoas que queremos instruir. Temos apenas que saber o momento de cada coisa – então, o velho passou o braço pelos ombros do mais jovem, que segurava o nariz dolorido, e disse – E então, você sabe o nome daquela garota? Vá descobrir, rapaz, porque amanhã aprenderemos o movimento das nuvens no céu e, se você se distrair de novo, eu te amarro em um barco e mando rio abaixo até a terra dos Anglos!!
O druida se sentou de novo. Pegou a tigela de caldo, e ficou pensando. As marés do tempo estavam mudando rápido demais. Precisavam de novos druidas, que soubessem os segredos dessa nova era, não apenas os da antiga. Se eles permanecessem parados no tempo, desapareceriam para sempre. Permitir que os jovens se distraíssem não podia ser um crime tão grave quanto deixar toda a tradição morrer.
Originalmente publicado em barddkunvelin.wordpress.com