Sobre o Caminho do Druida

Os dois homens pararam na estrada, pouco distantes da pequena vila que não chegaram a abandonar; estavam no limiar, ainda à vista das pequenas casas, onde já se tornam visíveis pequenas luzes com a chegada do crepúsculo e a grande fogueira para a celebração dessa noite estava sendo preparada, mas também próximos da floresta, onde os cheiros da mata, ainda úmida com a garoa da tarde, invadem as narinas dos dois homens. Na cidade, os cheiros eram diferentes, de mofo e sujeira, mas também de boa comida sendo preparada. Os dois ambientes eram diferentes, e podia-se dizer isso apenas pelo nariz.

-Então, rapaz, não me decepcione, – começou Yannet, após se sentar em uma grande pedra ao lado da estrada, com os raios de sol já enfraquecendo enquanto dão uma cor amarelada à barba do velho,- aqui estamos, no limiar entre a vila e a floresta, entre as casas e as árvores. Pois bem, agora eu quero que me diga: onde está o âmago de nossa fé, onde está o Sagrado?

Gwaltwent pensou por um tempo, e logo chegou à conclusão de que não seria interessante dar uma resposta pensada; ele deveria sentir a sua resposta. Por isso fechou os olhos por um momento, sentindo seus sapatos afundando na terra molhada, sentindo os aromas ao redor, sentindo os últimos momentos do calor do sol enquanto a noite caia com a seu negro manto e as pequenas estrelas curiosas já olhavam para terra. Então ele olhou para o seu velho mestre e respondeu:

-O Sagrado, mestre Yannet, está na floresta, está na natureza ao nosso redor. Está nas rochas antigas do mundo, nas árvores anciãs, na chuva que vem do céu, no sol e na lua e nos vento.

Yannet não suavizou a expressão. Isso fez com que Gwaltwent até se sentisse amedrontado, com medo de receber uma repreensão, ou mesmo um golpe de cajado. Nada aconteceu, contudo. O velho apenas continuou observando, com um olhar grave. Isso deixou o homem mais jovem constrangido.

-Eu… estou errado? –perguntou enfim.

-Por que? – perguntou Yannet. Gwaltwent não estava preparado para isso. Uma pergunta tão direta, ainda mais sobre algo que ele não saberia responder. Se ele estivesse certo, claro, ele teria uma resposta, mas se estivesse errado, não; e nem sabia se estava certo ou errado.

-Meu mestre, dentre tudo o que aprendi sobre a fé dos Druidas, ela é uma fé da Terra; nossos festivais seguem os ciclos da Terra, das suas estações, seguem a chegada da geada e o brotar das flores, o retorno do sol e a canção do vento. Seguimos os ensinamentos tanto das árvores, altivas e resistentes, que se erguem tanto aos céus quanto às profundezas em busca de sustento, quanto dos animais que habitam a floresta. Conhecemos os segredos da floresta, e da sua magia. Nossa fé ensina o ciclo da vida e da morte, e do novo nascer após isso. Por isso, eu não acredito que esteja errado.

O mais velho não suavizou o olhar.

-Eu disse que você estava errado? – perguntou, enfim.

-Não, não disse. Mas também não disse que eu estava certo. -o aprendiz perguntou, cabisbaixo.

-Pelo menos nisso, rapaz, você está totalmente certo. Mas em todo o restante, não está; embora não esteja também totalmente errado.

O mais jovem continuou cabisbaixo, confuso. O mais velho continuou:

-Gwaltwent, quem fez suas roupas? Desde a sua túnica branca, que você usa mesmo sem ser um Druida pronto, quanto o manto com as cores de sua família, do qual tanto se orgulha.

-As artesãs de Eburacum, mestre,- tanto ele quanto o mestre se recusavam a chamar a cidade pelo nome saxão.

-E se eu tirasse suas roupas e o deixasse nu, na floresta, principalmente nos ermos da Caledônia ou sob o Eryri?

-Eu provavelmente morreria, mestre- respondeu o ainda cabisbaixo aprendiz.

-Isso quer dizer que as artesãs de Eburacum fizeram algo de bom?

-Acho que… sim… mestre,- respondeu o aprendiz, ainda confuso.

-Eu acho que não. Pelo menos eu estaria livre de um choramingas medroso se alguém tivesse congelado de frio antes de vir a mim. Mas a verdade é uma só: estamos vivos pelos artesãos e por outras pessoas também. A costureira que faz nossas roupas, o ferreiro que faz as armas dos soldados e as ferramentas dos camponeses, o agricultor que planta e ara a terra, o criador do gado, e o chefe que regula tudo isso, anteriormente com o conselho de um de nós. Diga, rapaz, qual o deus que é a salvação da Tribo na grande batalha das eras?

-Lugus, mestre, o Possuidor das Muitas Artes,- respondeu o aprendiz.

-Que se apresentou perante o salão do chefe dos deuses como…

-guerreiro, campeão, copeiro, ferreiro, mago…- o mestre o interrompeu.

-Percebe que ele é um deus das artes humanas, então? Um protetor dos ofícios que estão guardados na cidade?

-Mas mestre…- ele é uma vez mais interrompido pelo mestre.

-Qual a deusa de nosso povo cujo culto mais demora a minguar, mesmo com o cristianismo?

-Brigantia, a Curandeira, a Poetisa, a Ferreira, uma deusa do povo.

-Exato,- respondeu o mestre e continuou a fitar o aprendiz.

-Então, o Sagrado está nas artes do povo, não na Terra? – perguntou o aprendiz.

Em um instante ele estava no chão. O golpe o pegara completamente desprevenido. Estava acostumado a receber as pancadas de Yannet logo após falar alguma besteira, mas nunca após um diálogo tão longo.

-Eu disse que você estava meio certo antes, e agora conseguiu aprender onde estava errado e esquecer onde estava certo!!! Vamos lá, levante-se e me diga algo digno antes que eu volte para a vila e deixe você preso na casa sem cear esta noite.

O homem mais jovem, que não era um jovem, apenas mais jovem que o outro, se levantou com alguma dificuldade. Ele respirou fundo, e se deixou relaxar. Ao longe, ouvia o som das primeiras notas sendo tocadas ao redor da fogueira, bem como o som das corujas e outras criaturas noturnas na floresta. Então, com o manto da noite encobrindo seu rosto, ele disse:

-Nossa fé é a fé dos Druidas, e a fé do nosso povo. Seu espírito está no povo, nas tradições e ensinamentos. Mas também está na floresta, na natureza. Vivemos entre a Tribo e a Terra, e ambos são fontes de nossa inspiração sagrada. Nossos Deuses nos legam as lições da Terra e da Tribo, das Artes e do Mundo. A cura, a forja, a poesia, todos são regidos pelos Deuses, bem como as fontes, rios e florestas. O estudo e o conhecimento são nossos objetos de estudo, as canções, lendas, histórias e mitos dos reis e Deuses, mas também estudamos os ritmos da Terra, os segredos da natureza, a magia da vida. Vivemos e sempre viveremos entre a Tribo e a Terra, e o Sagrado está em ambos, e a Tribo deve aprender com a Terra, enquanto a Terra deve permear a Tribo.

-E um dos papeis dos Druidas é mediar entre ambos. Tribo e Terra devem estar em acordo, ou viveremos em um mundo onde a vida se tornará dessacralizada. A criação não é profana, ela também é parte da Terra, como as colmeias das abelhas e as represas dos castores. Nosso trabalho é ensinar que ainda somos ligados à Terra, não só à Tribo e que ambas precisam agir em trégua. Pois a beleza do canto dos Bardos nos ensina lições, mas não as mesmas que o canto dos pássaros. Agora, pare de desperdiçar o meu tempo e vamos embora; há uma celebração na vila hoje e não quero perder algo por causa de um aprendiz desatento.

Notas:

1- Yannet e Gwaltwent não são personagens reais e nem pretendem ser. Eles são meras figuras simbólicas usadas para representar a espiritualidade céltica no momento do final da sua era clássica (pagã e politeísta) em meio às mudanças que ocorreriam no mundo antigo.

2- A “filosofia” que aqui é atribuída aos Druidas é paralela à usada por algumas ordens druídicas e grupos reconstrucionistas, bem como por mitólogos acadêmicos, de que as batalhas cósmicas das mitologias indo-europeias representam um conflito entre as forças da Tribo e a forças primais da Terra, e que uma trégua entre as duas é encontrada no seu final. Em minha interpretação pessoal, ela encontra respaldo na citação de Estrabão, que diz que os objetos de estudo dos Druidas são a Filosofia Ética (Tribo) e a Filosofia Natural (Terra).

3- Os Deuses citados estão com seus nomes grafados em forma Galo-Britânica, mas com atributos facilmente associados à mitologia irlandesa. O motivo disso é puramente estético, eu reconheço as diferenças entre as mitologias gaélica e britônica, mas sei que a Irlanda possui um material muito mais fácil de reconhecer, ainda que a história se passe na Grã-Bretanha. É um conto ilustrativo apenas.

Publicado originalmente em bardd.kunvelin.wordpress.com

Wallace William
Enviado por Wallace William em 19/12/2013
Código do texto: T4618357
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