Sobre o Profano
Os dois homens continuavam pela estrada, em um caminhar silencioso. Gwaltwent estava em um humor sombrio, emburrado, com pisadas firmes dos seus pés; Yannet, por sua vez, mantinha um olhar sério, mas ainda sereno, como se alheio ao que incomodava seu discípulo. Após algum tempo de caminhada em um dia quente de verão, Gwaltwent não se segurou, e terminou desabafando.
-Mestre, como aquele sacerdote cristão, aquele padre, ousou chamar a nossa benção de “profana”? Não sabe ele que a benção através da natureza é uma arte sagrada?
Yannet sequer se virou, continuou andando, batendo seu cajado no mesmo ritmo; mas dessa vez havia uma voz saindo de sua boca:
-Não, ele não sabe. Nunca estudou isso; quem dera essa Igreja tivesse aprendido algo com Pelágius, mas não aprendeu. Mas e você, garoto? Sabe o que é profano?
-Profano é o contrário de sagrado, mestre, qualquer tolo pode dizer isso!! Deveríamos ensinar que os profanos são eles!! E aquele sacerdote cristão disse que nosso trabalho era profano, quando ele era sagrado!!
Yannet finalmente parou e se virou para Gwaltwent; havia um sorriso zombeteiro em seu rosto:
-Sagrado para quem, Gwaltwent?
O homem mais jovem pensou por um tempo, então baixou a cabeça, desconsolado. Até aceitaria uma pancada do cajado do seu mestre naquele momento. Mas não foi o que aconteceu; ao invés disso, Yannet se sentou em uma rocha na estrada. De repente, ele parecia muito mais velho do que sempre pareceu, encurvado, falando com uma voz baixa:
-Não vou mentir para você que me incomoda também; até mais do que a você. Mas o que a Igreja (e digo que é a Igreja, não a religião; não há nada sobre nós no “livro sagrado” deles) considera ou deixa de considerar profano é problema deles; nós temos nossas próprias preocupações, ainda que eles estejam entre elas. Mas e se respondêssemos a todas as provocações? Poderíamos simplesmente chamar os padres de “profanos”? Teríamos condições de suportar as consequências? Hoje já é tão difícil, imagine como seria se déssemos motivos a eles.
Gwaltwent sentou-se no chão, cabisbaixo. De repente, tudo parecia tão difícil, tão difícil de distinguir o que deveria ser feito, se professar o Sagrado ou condenar o Profano. Mas Yannet continuou:
-O que é profano, Gwaltwent? Padres falando de sua fé, para sua congregação, sem nem mesmo saber sobre o que falam? Isso não é profano; é só tolice, palavras vazias jogadas ao vento que encontram terreno fértil em mentes vazias e desesperadas. Mas se quer lutar contra o Profano, eu lhe darei algo contra o que lutar: o esquecimento é profano, quando perdemos nosso conhecimento do mundo e da nossa história; o esquecimento é profano, quando perdemos as lições legadas pelos Ancestrais; profano é o homem bem nascido sem caridade, profano é o homem de conhecimento mas sem partilha-lo, profano é o belicoso que puxa a espada sem uma razão justa, profano é o satirista que debocha de quem não merece o escárnio, profano é homem sem honra, hospitalidade ou decência. Profano é aquele que nega a verdade, profano é aquele que contorna a honra, profano é aquele que se aproveita do subterfúgio. Se quer saber o que é profano, eu digo as coisas profanas desse mundo; esquecer o que lhe é devido, aos homens e Deuses, destruir o conhecimento, destruir o ensinamento dado por pai e mãe, avô e avó, ancestrais. Profano é aquele que nega a beleza da vida, que ignora o canto dos pássaros em busca de seu lucro, que não aprecia a corça com seus filhos, que não reconhece a realeza do cervo, a nobreza do cavalo, a magia do gato, a irmandade do cão. Profano é aquele que não reconhece o valor do Sol sobre a lavoura na primavera, nem aprecia o som do vento no outono. Profano é aquele que corta o bosque sem motivo, o sagrado carvalho, o poderoso freixo, para paliçadas para se proteger de guerras criadas por si, e nada aprende com a sabedoria das árvores e dos seres invisíveis da floresta. Profano é aquele que destrói a vida dos rios, fonte de nossa própria subsistência, deixando cursos mortos onde outrora corria a vida nutridora da Terra e da Tribo. Quer lutar contra o Profano, Gwaltwent? Então esqueça os padres e volte-se para a profanação que é o homem esquecer seu papel como parte tanto da Tribo quanto da Terra.
Publicado originalmente em barddkunvelin.wordpress.com